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segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O Banco Mundial no comando da invasão de terras

Fonte: EchoGéo
Enquanto as imagens da fome na África rodam o mundo, poucos sabem que esse problema está ligado a investimentos na compra de terras. Com isso, a Etiópia cede milhões de hectares p/ transnacionais que substituem a agricultura de subsistência pela exportação. Em nome do livre mercado, o BM encoraja esse movimento

por Benoît Falaise

Três anos após a crise alimentar de 2008, a questão da fome ressurge no Chifre da África. Entre as causas do flagelo estão os investimentos fundiários de grande escala, que buscam estabelecer culturas alimentícias e energéticas onde houver terra arável disponível. Sua amplitude é inédita. São 45 milhões de hectares – o equivalente a cerca de dez vezes a média dos anos anteriores – que teriam mudado de mãos em 2009.1 Na verdade, é difícil distinguir os investimentos em vista daqueles decididos ou mais ou menos executados, tamanha a má vontade das empresas e dos Estados em entregar seus números. Mesmo o Banco Mundial afirma que teve enormes dificuldades para obter informações confiáveis, a ponto de ter tido de se basear, para redigir seu relatório sobre o assunto, publicado em setembro de 2010,2 nos dados – muito alarmantes – divulgados pela ONG Grain.3

Em princípio, essas compras de terra enquadram-se muito bem no discurso adotado pelo Banco Mundial após a crise de 2008.4 A instituição avalia que qualquer aporte de capitais externos a um país com déficit de poupança favorece seu desenvolvimento, portanto, os investimentos privados na agricultura contribuem para o desenvolvimento nacional e a luta contra a pobreza, exigência moral do século XXI. Nota-se, aliás, que a Sociedade Financeira Internacional (SFI), filial do Banco Mundial, tem um papel-chave na promoção de tais investimentos.

O recente relatório do BM traz um balanço muito instrutivo, confirmando as numerosas denúncias das ONGs. Os argumentos são em defesa de uma exploração mais racional, logo mais produtiva, de terras até então subexploradas: com essa finalidade, deveria ser posto em prática um conjunto de técnicas modernas, combinando o uso de adubos químicos, mecanização, obras de irrigação, culturas puras e variedades de alto rendimento obtidas por hibridação ou, melhor ainda, por modificação genética.

Mas a aplicação indiscriminada dessas técnicas fragiliza os agroecossistemas, que muitas vezes devem sua fertilidade unicamente às práticas agrícolas e pastoris de preservação.

Três casos de espoliação

É no plano social que se concentra a artilharia das ONGs. Segundo elas, podem ser encontrados três casos típicos de espoliação: os investidores, apoiados pelos poderes públicos, alegam que as terras são subexploradas pela população e até perdidas para a agricultura (ver o mito da mamona, que faria reverdecer o deserto); ou se aproveitam da fluidez das regras fundiárias para registrar parcelas que até então eram objeto de “simples” direitos costumeiros, com a cumplicidade das autoridades locais; ou então recorrem à velha retórica das necessidades de desenvolvimento e sua violência legítima.

Trata-se, nesse projeto, de passar de uma agricultura familiar “arcaica” a uma agricultura modernizada, com alguns custos sociais a curto prazo.

Para as populações atingidas, isso significa perda de condições de vida – pelo menor acesso à terra e à água –, marginalização e vulnerabilidade alimentar.

Mas, contrariando as esperanças dos teóricos liberais e as promessas dos investidores, esses inconvenientes não constituem simples “custos de transição” rumo a um futuro melhor. Na verdade, segundo confessou o próprio Banco Mundial, os benefícios econômicos são limitados.5 Pelo contrário, assiste-se a uma clara destruição de empregos decorrente da substituição de agriculturas familiares que mobilizam prioritariamente energia humana por sistemas latifundiários baseados justamente na redução do fator trabalho. Além disso, esses enclaves agrícolas modernos apoiam pouco o mercado local, pois recorrem à importação de insumos. Por fim, eles não contribuem para a autossuficiência alimentar, já que se trata acima de tudo de exportação. A Etiópia, atualmente assolada pela fome, é também um dos países mais tomados pelos investidores fundiários estrangeiros. Desde 2008, 350 mil hectares foram alugados pelo governo, que projeta ceder outros 250 mil em 2012.

Então, como conciliar o que parece inconciliável: de um lado, a ideologia do mercado e do investimento livre, e, de outro, a redução da pobreza, que passa pelo apoio à agricultura familiar? Os organismos internacionais acham que o impasse pode ser resolvido com o apelo a um investimento mais “responsável”. Nesse sentido, o Banco Mundial, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) e o International Fund for Agricultural Development (Ifad) publicaram, em janeiro de 2010, os “sete princípios para um investimento agrícola responsável que respeite os direitos, os meios de vida e os recursos” (ver box). Mas esses princípios continuam na linha das políticas liberais. Portanto, os problemas são vistos como consequência de falta de transparência (“véu do segredo”), de falhas locais (“Estados de leis fracas” ou “pouco preparados”), da insuficiente consulta das partes interessadas (sobretudo as populações rurais expropriadas, cujas contestações são frequentemente reprimidas) e da ausência de estudos de impactos que sigam os critérios internacionais. Do mesmo modo, as correções recomendadas são da ordem do voluntariado. Trata-se de criar selos e códigos de boa conduta, mas de modo algum rever – ou reformular – as regras que regem os investimentos, estrangeiros ou não, ou de recorrer a qualquer texto legal que imponha limites a eles. Aposta-se mais na capacidade de autorregulação dos mercados que na ação pública.

De acordo com as vinte ONGs que em abril de 2010 assinaram uma declaração de oposição aos “sete princípios”, esses apelos à responsabilidade não passam de cortina de fumaça. A crítica ganha ainda mais consistência diante da imbricação muitas vezes estreita entre os interesses das empresas e os dos Estados. Isso significa que não cabe apenas às empresas investir de maneira responsável, mas também aos Estados, que apoiam projetos privados e investem por meio de fundos soberanos. É bastante razoável duvidar do alcance do apelo às “boas práticas” quando se trata de segurança – alimentar e energética – nacional.

Bem longe dessas críticas, o Banco Mundial defende uma posição bastante próxima daquela desenvolvida após a crise financeira do fim dos anos 2000: mais transparência e ética, e as virtudes dos mercados poderão se expressar plenamente. Não apenas esse modelo de desenvolvimento agrícola não foi questionado como, pelo contrário, foi reforçado. O esplendor dos mercados fundiários deve ser particularmente encorajado.

Destaquemos a ambiguidade do primeiro princípio do agroinvestimento responsável, que trata do reconhecimento e do respeito aos direitos existentes: aparentemente destinado a proteger melhor os interesses das comunidades locais, ele também pode aprofundar sua vulnerabilidade. A verdade é que o direito de propriedade fundiária devidamente reconhecido costuma ser um presente de grego para os camponeses pobres, pois serve de garantia para o crédito ou pode ser cedido em caso de grandes dificuldades, o que aprofunda a concentração de terras. Além disso, ele tende a enrijecer as relações de forças, excluindo qualquer reforma agrária que vise à redistribuição fundiária, sobretudo para famílias que dispõem de superfícies muito pequenas para sair da pobreza, e que logo são consideradas insuficientemente produtivas, o que pode justificar sua aquisição por algum investidor mais bem dotado de capital, em virtude do princípio liberal da alocação ótima dos capitais.6

Enquanto o vínculo entre concentração fundiária e pobreza já não precisa mais ser demonstrado,7 o papel positivo da agricultura familiar é paradoxalmente realçado pelo próprio Banco Mundial: utilização intensiva do fator trabalho limitando a amplitude do subemprego e, portanto, do êxodo rural; menor artificialização dos ecossistemas, gerando menos poluição e superexploração; ancoragem territorial, tanto em termos de mercado consumidor (mercado alimentício, atividades de transformação) como de fornecimento de insumos (artesanato). Além disso, insistindo na necessidade de viabilidade econômica dos projetos (princípio 5), a instituição financeira internacional demonstra – se é que havia necessidade – que muitos investimentos de grande escala são realizados numa lógica de curto prazo, fundada na motivação especulativa ou no arranjo político, e não em visões a longo prazo.

O apoio aos pequenos e médios

Portanto, uma conclusão deveria logicamente se impor: é necessário apoiar os pequenos e médios produtores, seu acesso ao crédito, aos mercados locais, a pesquisas baseadas mais nos princípios da agroecologia que nas biotecnologias importadas, e protegê-los nos mercados mundiais contra os efeitos destruidores da concorrência e desses investimentos fundiários economicamente inviáveis e ecológica e socialmente insustentáveis. Mas não é isso que recomenda o Banco Mundial, que insiste em buscar as condições de uma melhor articulação, “ganha-ganha”, entre agricultura familiar e agroindustrial, as quais, no entanto, são inteiramente opostas. Essa articulação poderia passar principalmente, diz o banco, pela contratualização das relações entre o camponês e a empresa agroindustrial. Desse modo, o primeiro poderia inserir-se nas grandes cadeias internacionais, securizar seus rendimentos e acessar insumos modernos. A segunda diversificaria suas fontes de abastecimento e limitaria seus custos de mão de obra, sabendo que um camponês não “conta” seu tempo de trabalho. Mas tudo isso ainda se baseia na hipótese de um contrato negociado entre iguais, e não na de uma relação de forças na qual cada um tenta captar o máximo valor, e que pode conduzir a uma sub-remuneração do trabalho agrícola.

“Monopólio responsável” continua sendo, portanto, um oximoro, pois essas lógicas de investimento de larga escala inscrevem-se num modelo não durável, fazendo pouco caso das dinâmicas das sociedades camponesas e da diversidade das soluções técnicas. Assim, a espoliação fundiária faz eco à velha ladainha que domina a economia mundial: juntos, o mercado livre, as tecnologias (aqui, biotecnologias) e o investimento privado (responsável, bem entendido) salvarão a humanidade da penúria alimentar que a ameaça. Mas, do mesmo modo que as finanças desreguladas, ainda que “responsáveis”, conduzem inevitavelmente a fortes instabilidades, o modelo agroindustrial e latifundiário conduzirá a outras crises – cuja culpa sempre poderá ser atribuída às fatalidades climáticas, à demografia dos pobres ou a algum potentado local irresponsável.


Ilustração: Samuel Casal / d'aprés Portinari

1 Ler Joan Baxter, “Ruée sur les terres africaines” [Corrida às terras africanas], Le Monde diplomatique, jan. 2010.

2 Banco Mundial, “Rising global interest in farmland: Can it yield sustainable and equitable benefits?” [Cresce o interesse por terras agrícolas: renderá ele resultados sustentáveis e igualitários?], Washington, set. 2010.

3 Ver www.grain.org e www.farmlandgrab.org.

4 Banco Mundial, “Rapport sur le développement dans le monde: L’agriculture au service du développement”[Relatório sobre o desenvolvimento no mundo: A agricultura a serviço do desenvolvimento], Washington, set. 2008.

5 Banco Mundial, 2010, op. cit.

6 “Direitos de propriedade garantidos e inequívocos [...], permitindo aos mercados ceder as terras para utilizações e explorações mais produtivas” (Banco Mundial, 2008, op. cit., p. 138).

7 Ler Olivier de Schutter, “Accès à la terre et droit à l’alimentation” [Acesso à terra e direto à alimentação],relatório apresentado à 65ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, Nova York, ago. 2010

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