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terça-feira, 9 de julho de 2013

Megaeventos e legislação de exceção. Poderes como servos do capital e legado de ataque aos direitos fundamentais

Johnny Wilson Batista Guimarães

Escrivão de Polícia Federal. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG, pós-graduado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera, habilitado pela OAB/MG, é Escrivão de Polícia Federal, Classe Especial, lotado e em exercício na Superintendência Regional da Polícia Federal em Belo Horizonte/MG, atualmente na Delegacia de Prevenção e Repressão a Crimes Financeiros.

Fonte: Jus.com.br

No contexto da Copa do Mundo e outros eventos mundiais, revela-se um estado de exceção permanente, de desrespeito aos direitos fundamentais. O governo, servo do capital, não é mais protagonista dos caminhos da administração pública. Não há legado que supere o prejuízo da violação de nossa ordem constitucional.

Resumo: Esta monografia é resultado de pesquisas realizadas a partir de parcela da legislação de exceção inserida no ordenamento jurídico brasileiro como forma de viabilizar, à margem da Constituição Federal de 1988 e seus princípios, os chamados megaeventos. Busca-se confrontar tal legislação de exceção com o idealizado Estado Democrático de Direito, demonstrando que, ao final, vivemos num estado de exceção protagonizado pelo capital e pelos poderes constituídos, servos deste mesmo capital. O peculiar contexto vivido pelo Brasil, alvo das atenções da mídia mundial e, bem por isso, sob pressão crescente de interesses de grupos econômicos, em detrimento dos valores preconizados na própria Constituição, permite um momento de registro ímpar, que deixa às claras o alinhamento diverso da interpretação constitucional legítima.

Palavras-chave: Estado de exceção. Megaeventos. FIFA. Legislação de exceção. Soberania. Militarização. Regime diferenciado de contratação pública. Direito de greve. Direito à moradia. Higienização urbana. Violação a direitos fundamentais.

Sumário: 1. INTRODUÇÃO. 2. O EXCEPCIONALÍSSIMO ESTADO DE EXCEÇÃO. 3. ESTADO DE EXCEÇÃO PERMANENTE, ESTADO COMO SERVO. 3.1 Militarização. 3.2 Violação à soberania e coordenação de dados sigilosos pela FIFA. 3.3 Regime diferenciado de contratações públicas. 3.4 Cerceamento do direito de greve. 3.5 Higienização urbana. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

Foi possível ver a mentira estatal se desenvolver em si e por si, no perfeito esquecimento de seu vínculo conflituoso com a verdade e a verossimilhança, a ponto dessa mentira descrer de si mesma e se substituir de hora em hora. Guy Debord


INTRODUÇÃO

Chegou a hora dos chamados megaeventos aportarem ao Brasil. A Jornada Mundial da Juventude de 2013, a Copa do Mundo FIFA de 2014 e os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016 estão com data marcada para início[1].

Antes mesmo de divulgadas as tabelas para as competições esportivas, as grandes marcas já anteciparam sua entrada em campo. A vinda do circus para um país em “vias de desenvolvimento” ou “emergente” ou “participante dos BRICs” ou “maior promessa da América Latina na era da globalização”, exige para este povo muitas concessões, em troca do prestígio de anfitrião e questionável aproveitamento econômico e social.

As concessões em prol do capital são diversas e a República Federativa do Brasil está sendo persuadida a molestar direitos fundamentais inalienáveis, numa demonstração factual da excepcionalidade constitucional.

Este trabalho tentará delinear os aspectos onde há a violação de garantias fundamentais em favor do mercado e como o Governo (nos três níveis: Federal, Estadual e Municipal, envolvendo os três poderes), à mercê dos agentes econômicos[2], em trabalho com lideranças parlamentares e a grande mídia, busca por meio da persuasão, do discurso utilitarista e com o perverso apoio na política do medo e da retórica do crescimento econômico, impor sua vontade[3] e visão de mundo.

São muitas as violações a direitos e garantias consagrados quando se faz a análise detida dos instrumentos normativos que preparam a chegada do investimento internacional para os megaeventos. Selecionaremos as violações mais gritantes e tentaremos demonstrar a incoerência e a irrazoabilidade do convívio destas medidas de exceção com o Estado Democrático de Direito que imaginamos constituir.

De tão vasto o número de normas de exceção, já não podemos tratar de todas que saltam aos olhos, sem que nos percamos além das limitações desta monografia. Seremos obrigados a selecionar algumas poucas normas excepcionais para trazer às escancaras o regime de exceção que se infiltra sob o manto de nosso Estado Constitucional.

Partimos do pressuposto óbvio (mas ingênuo) da plena vigência e necessária observância da Constituição Federal de 1988, seus princípios, garantias e direitos fundamentais, mesmo frente ao poderio da Fédération Internationale de Football Association (FIFA) – entidade suíça[4] de direito privado, de âmbito mundial que regula o futebol. Nossa premissa é a de que neste confronto, a Constituição Federal de 1988 deve prevalecer.

Diante do cenário que presenciamos não nos satisfaz ostentar o documento constitucional como parâmetro irrefutável, uma vez que não tem sido suficiente para conter o forte ataque dos poderes econômicos e de interesses menores. Sustentamos, pois, a necessidade de trazer à luz as violações reais à Carta Magna e sua passiva aceitação pela sociedade[5] e pelos poderes constituídos, talvez se olvidando de que nossa condição de cidadãos deveria superar nossa suposta vocação de “nascidos para jogar futebol”[6], conforme chancela da Nike.

Para além de defender os ditames constitucionais, este trabalho buscará exibir as violações presentes e iminentes ao seu conteúdo, na esperança de fortalecer os que insistem em denunciar a “mentira sem contestação” [7] de uma normalidade democrática.

Para tanto, inicialmente delinearemos os principais aspectos do estado de exceção, suas considerações mais relevantes no campo doutrinário e tentaremos limitar formalmente a possibilidade de sua existência. Frente ao seu recorte, demonstraremos a regra em que se tem tornado tal estado de coisas marginal, com a profusão da legislação de exceção.

De outro vértice, demonstraremos como o estado de exceção, no exato sentido dado por Walter Benjamim[8], se tornou a regra, por vulgarizar-se de forma perene, sempre com auxílio da política do medo e das características desvirtuadas da sociedade do espetáculo[9].

Aqui desvendaremos as diversas facetas do estado de exceção, não exclusivamente uma ação do Poder Executivo, este, hoje, um mero servo do capital e não mais protagonista dos caminhos da administração pública.

Utilizamos como referencial os diversos dispositivos normativos já aprovados e os projetos de lei em vias de aprovação, que deixam patente esta investida maciça do mercado mundial e dos interesses das grandes empresas contra direitos fundamentais consagrados, liberdades públicas e qualquer possibilidade viável de existência fora das regras do capital e em função de seus lucros. A eles, confrontaremos os principais autores críticos deste estado de coisas.

2 O EXCEPCIONALÍSSIMO ESTADO DE EXCEÇÃO

É premissa para o entendimento do Estado Constitucional que os preceitos constitucionais têm premência sobre os demais instrumentos normativos, irradiando seus princípios e normas, de forma que o ordenamento seja um todo coerente, orientado pelo horizonte traçado pelo legislador constituinte. Desde o desenho da estrutura escalonada da ordem jurídica, trazida com maestria por Hans Kelsen, que doutrinadores de todas as vertentes coadunam com esta lógica, uma vez que “a Constituição representa o escalão de Direito positivo mais elevado” [10].

A partir deste imperativo do Estado Constitucional e do entendimento de que o equilíbrio é essencial para tal ordem, José Afonso da Silva afirma que:

Fora desses parâmetros, as competições pelo poder geram uma situação de crise, que poderá assumir as características de crise constitucional, e esta, se não for convenientemente administrada, governada, poderá provocar o rompimento do equilíbrio constitucional e, por conseguinte, pôr em grave risco as instituições democráticas [11].

Estas palavras vêm como introito à tratativa sobre a Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, nomeado por ele como “Sistema Constitucional das Crises”.

Diante da possibilidade de instabilidade da ordem constitucional, o próprio legislador originário se antecipa e trata abertamente do estado de exceção, um escape para que se busque o contorno da grave turbulência, de modo que a ordem jurídica volte a se estabilizar.

Quando assim o faz, o legislador constituinte baliza a medida eventual e extrema em dois princípios informadores: princípio fundante da necessidade e princípio da temporiedade[12]. Sem a necessidade, o estado de exceção configura “puro golpe de estado, simples arbítrio”. Sem respeito ao princípio da temporiedade, que ordena a fixação de tempo limitado para a vigência da legalidade extraordinária, o estado de exceção deturpa-se em ditadura permanente.

A razão da previsão do estado de sítio e do estado de exceção, tratados em nossa Constituição nos artigos 136 e 137, é a mantença ou recuperação da normalidade constitucional, no caso de grave crise institucional e com os limites acima mencionados.

Tais artigos estão incluídos no Título V da Constituição Federal de 1988, intitulado “Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”.

Somente quando a ordem jurídica se encontra ameaçada por grave e iminente instabilidade institucional, ou atingida por calamidades de grandes proporções na natureza, ou ainda no caso de declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira, se aceita a excepcionalidade temporária de limitações de direitos fundamentais e medidas coercitivas destoantes da normalidade constitucional. Suspendem-se alguns dos pilares constitucionais, para que se possam recuperar condições de sua plena realização[13].

A tomada de decisões em favor da comunidade, pela natureza ontológica do conceito de Democracia[14], deve ter em seu âmago a discussão, a crítica, a deliberação. Daí porque o princípio da legalidade, desde a Revolução Francesa, norteia o fazer jurídico ocidental.

O Estado Democrático de Direito, num entendimento desvestido das acentuadas feições demagógicas que têm tomado nas últimas décadas, pressupõe que qualquer limitação aos direitos do indivíduo se dê através da lei (“the law gives authority”[15]), que é o espaço de deliberação por excelência. E onde é reservada (em tese) a possibilidade de participação efetiva das minorias[16].

No estado de exceção e no estado de sítio, momentos de gravíssimos choques que colocam em xeque a própria noção da ordem normativa, há a permissão para que o Executivo aja por decreto[17], unilateralmente, tomando medidas coercitivas sem o espaço da deliberação, sujeita, ainda aqui, ao controle posterior (defesa) ou anterior (sítio) do Poder Legislativo, conforme o caso.

A Constituição Federal de 1988 prevê, em seu artigo 136, §4º:

Decretado o estado de defesa ou sua prorrogação, o Presidente da República, dentro de vinte e quatro horas, submeterá o ato com a respectiva justificação ao Congresso Nacional, que decidirá por maioria absoluta. (grifo nosso)

O controle do Congresso Nacional, no caso do estado de sítio, está disciplinado no art. 137, parágrafo único, nos seguintes termos:

O Presidente da República, ao solicitar autorização para decretar o estado de sítio ou sua prorrogação, relatará os motivos determinantes do pedido, devendo o Congresso Nacional decidir por maioria absoluta. (grifo nosso)

O parágrafo terceiro determina que o Congresso Nacional permanecerá em funcionamento até o término das medidas coercitivas.

A normalidade democrática deve se pautar pela existência do dissenso e pela elaboração crítica das discordâncias no espaço parlamentar. A excepcionalidade aceita que o executivo se adiante um passo e aja, com o dissenso postergado, ou que, depois de autorizado, tome o passo decisório que informar necessário, sempre no caminho da estabilidade republicana e dos princípios constitucionais adotados[18].

Afora o essencial controle legislativo an passant tratado aqui[19], a Constituição insta por cautela uma série de limitações ao poder excepcional no resguardo possível dos cidadãos, no controle do prazo da medida e na enumeração dos casos entendidos como passíveis de ensejar estado de exceção.

Esta espécie de estado de exceção, previsto na Carta Magna como herança da tradição constitucionalista, pode ser classificada, segundo critérios apontados por Carl Schmitt[20], como “Ditadura Comissária”.

Giorgio Agamben (2004, p.20) esclarece que:

A distinção schmittiana entre ditadura "comissária" e ditadura soberana apresenta-se aqui como oposição entre ditadura constitucional, que se propõe a salvaguardar a ordem constitucional, e ditadura inconstitucional, que leva à derrubada da ordem constitucional.

Lucas Martins (2013) pormenoriza esta explicação:

Neste tipo de ditadura, o soberano, percebendo uma situação perigosa para a ordem pública, nomeia um comissário de ação (ditador), que terá um determinado tempo para resolver a situação concreta problemática. Para tanto, a Constituição poderá ser suspensa, mas sempre temporariamente. Portanto, a ditadura comissária se estrutura fundamentalmente no poder constituído: o comissário de ação (ditador) não é o soberano. Ocorre que o poder constituído, representado pela figura do soberano, possibilita que este nomeie o comissário de ação para salvaguardar a ordem necessária, salvando, assim, a própria Constituição.

Agamben dá o devido relevo ao receio de se definir e neutralizar as forças que, uma vez instauradas na ditadura comissária, poderiam facilmente descambar para a segunda forma de ditadura (soberana). Haveria aqui uma fragilidade da tese de Carl Schmitt, que divide a ditadura em duas categorias, sem, contudo, demonstrar que a transição de uma (comissária) para a outra (soberana) pode ocorrer diante de circunstâncias propícias e supurar o sistema[21]:

Não há nenhuma salvaguarda institucional capaz de garantir que os poderes de emergência sejam efetivamente usados com o objetivo de salvar a constituição. Só a determinação do próprio povo em verificar se são usados para tal fim é que pode assegurar isso [...]. As disposições quase ditatoriais dos sistemas constitucionais modernos, sejam elas a lei marcial, o estado de sítio ou os poderes de emergência constitucionais, não podem exercer controles efetivos sobre a concentração dos poderes. Conseqiientemente, todos esses institutos correm o risco de serem transformados em sistemas totalitários, se condições favoráveis se apresentarem.

O Estado Democrático, onde a discussão legislativa, com efetiva participação das minorias, deveria ser necessariamente a regra apriorística, atualmente confirma, aqui e além-mar, as palavras de Gonzalo Velasco Arias (2012):

A urgência com a qual se apela para medidas de segurança deslegitima os mecanismos institucionais de representação, deliberação e controle de poderes, concentrando toda a au­toridade para a tomada de decisões no Executivo. A isso se soma a chamada para a unidade nacional e a aceitação de sua inequívoca representação no Executivo, o que ocasiona não só o descrédito das instituições – v. g., das verdadeiras instâncias representativas – mas também a impossibilidade do dissenso, gerando a absoluta despolitização da sociedade.

Em que pesem as questões psicanalíticas da busca da percepção paterna no líder[22], a condução da ordem jurídica deve se desvestir deste inconsciente e buscar a ponderação da divisão de poderes na tentativa de contenção dos excessos totalitários. O Executivo não pode, pessoalizado, midiatizado[23], se sobrepor à razão de divisão e dos freios e contrapesos do sistema. Mas, aqui, estão todos sendo ingênuos novamente? O que fazer com a indignação de quem vê indícios veementes de um estado de exceção crescente, às vezes subreptício, às vezes escandaloso, mas sempre “falacioso, enganador, impostor, sedutor, insidioso, capcioso” [24]?

A tentativa de confronto com o pilar seguro da Constituição não tem se mostrado suficiente. O controle de constitucionalidade a ser realizado pelo Judiciário tem-se desvirtuado e não cumpre sua função precípua[25]. Estariam os meios de controles viciados e interligados a esta rede poderosa em que se tornou o “capitalismo burocrático totalitário”? (DEBORD, 2011, p. 202)

Em 25 anos de vigência da Constituição de 1988 é patente que não tivemos circunstâncias políticas, econômicas ou sociais que justificassem as excepcionalidades dos artigos 136 e 137.

Dentro deste quadro, cabe indagar: se até hoje não houve a ocorrência das hipóteses de instauração formal da “legalidade extraordinária” [26], não estaria tudo de acordo com a “ordem e o progresso”, a “lei e a ordem”? Não estariam os poderes funcionando numa normalidade democrática invejável? Por que falar aqui em estado de exceção, combatendo os atos administrativos, projetos de lei e leis[27] (que tramitam nos espaços próprios de deliberação) que regulam, limitam e restringem espaços de liberdades dos cidadãos ao tempo dos megaeventos no Brasil? Não seria contraditório e inapropriado dizer de estado de exceção na normalidade da tramitação legislativa e do exercício governamental?

Para responder a estas indagações, dentro da nossa linha de argumentação, busca-se auxílio no texto de autoria de Antonio Giménez Merino, intitulado “A crise Europeia: excepcionalidade econômica, gestão autoritária e emergência de formas ativas de resistência civil”, onde fica evidente que a resposta não é simples.

Num mundo integrado pelas informações, redes mundiais de computadores, redes sociais, capacidade acelerada de locomoção e, sobretudo, sob o domínio único do mesmo mercado e da “barbárie neoliberal”, não é difícil imaginar que a convulsão que atinge alguns países da Europa seja a mesma que aflige[28] o Brasil.

A partir da análise criteriosa de Merino, sob o contexto da democracia de participação na Europa adaptada a nossa realidade, intuí-se que a despolitização que lá ocorre em passos largos é também sentida aqui.

A democracia no Brasil desvirtuou hipocritamente os próprios instrumentos normativos de participação dos cidadãos, conseguindo do sufrágio universal tão somente o momento de legitimação das ações em função do mercado ou da burocracia corrupta. Fantasia-se de vestimentas formais os mandamentos que materialmente surrupiam a Constituição.

O aparato judiciário é chamado ao confronto entre lei e Constituição, mas, imerso na sociedade do espetáculo e sob pressões midiáticas que algumas vezes beiram à ameaça, sucumbe a seu dever contramajoritário.

Em que pese a camuflagem de legalidade, os instrumentos normativos de exceção se multiplicam e ficam registrados como fósseis deste período de pouca ou nenhuma representação popular na gestão pública e de ataque sistemático dos direitos fundamentais.

Eis a conclusão enfática de Merino:

A democracia – entendida como um sistema de procedi­mentos para obter uma vontade geral das populações por meio de seus representantes políticos – nunca foi capaz de resolver o problema da desigualdade factual senão formalmente, por meio do expediente da igualdade jurídica. Contudo, a crise atual vem acentuando de tal modo essa desigualdade que até mesmo as formas jurídicas têm entrado em crise: legislação por decreto, leis ad hoc, reformas constitucionais por medidas. Isso significa que a senda da neutralização do conflito social por meios jurídicos – como sucedera na fase anterior às Constituições do pós-guerra – já é impraticável.

3 ESTADO DE EXCEÇÃO PERMANENTE, ESTADO COMO SERVO
Necessitas legem non habet[29].

Citado por Giorgio Agamben no início de seu “Estado de Exceção”, tal adágio tem fundamentado vários abusos por aqueles que se acham investidos de poderes quase subrenaturais, denominados “poderes de Estado”, às vezes revestidos do Rei Midas “bem público”, ou “finalidade pública”, ou “dignidade humana”, expressões cunhadas para a proteção e busca de um consenso em torno do caminho a ser trilhado pela sociedade. Contudo, como sói acontecer neste país, nobres premissas são desvirtuadas com fins demagógicos e utilizados como ferramentas de persuasão para causas menos nobres.

Alguns preconceitos preparam o campo para a utilização equivocada do sistema jurídico contra o próprio sistema, ferindo de morte o ideário de ordem democrática. É assim o próprio conceito de Estado.

Com efeito, a previsão constitucional do estado de defesa e sítio, encontra-se no Título V da Constituição Federal de 1988, com o nome “Da Defesa do Estado e Das Instituições Democráticas”.

Neste ponto, surge a pergunta: quem é este Estado? No texto “Deus e Estado”[30], Hans Kelsen conclui que “esse Estado da teoria geral do estado é, enquanto ordem, idêntico ao direito. Enquanto pessoa é apenas a personificação, a expressão antropomórfica da unidade do direito”, ou seja, uma hipostasia[31]. Em que pese ocupar espaço na Constituição pátria, este Estado não passa da própria realização da Carta Magna e da ordem jurídica que ela ordena. O estado de necessidade que, pela lógica da doutrina da estabilização constitucional, pode motivar qualquer atitude excepcional à ordem vigente deve ser justamente a necessidade de manutenção da harmonia constitucional.

Imaginar a existência de um Estado que justifique e busque agir pelo estado de necessidade, firmando seus passos brutos, é trazer um ente equiparado a Deus ao “Estado” laico. Kelsen não deixa dúvidas de que o Estado seria, pois, uma crença:

Assim, Deus e Estado só existem se e na medida em que alguém crê neles, e são aniquilados – junto com seus imensos poderes que saturam a história universal – quando o espírito humano se liberta de tais crenças. [32]

Enquanto não se dá tal libertação, continuamos à mercê de uma “política de Estado”, justificando-se no estado de necessidade diverso da manutenção e dinamismo da ordem constitucional. Excepciona-se rotineiramente a ordem constitucional para fazer valer interesses mesquinhos metamorfoseados na entidade opressora do Estado.

Aqui é oportuno recobrar a Tese VIII de Walter Benjamin: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção no qual vivemos é a regra” [33].

Vê-se, assim, que a utilização do conceito de Estado tem o objetivo de tirar a forma da ordenação normativa, fantasiando poderes numa entidade personificada, que passa a ser titular da força e a motivar, em seu nome, atitudes contrárias à ordem jurídica constitucional. Sob o amparo (ou domínio) do Estado, é possível qualquer reversão que busque a segurança deste ente estranho à norma constitucional e que se sobreponha a ela. Como antídoto, a lógica insofismável de Kelsen[34]: “A redução do conceito suprajurídico de Estado ao conceito de direito é o pré-requisito imprescindível para o desenvolvimento de uma autêntica ciência jurídica enquanto ciência do direito positivo depurado de todo direito natural”.

Esta constatação torna-se útil nesta monografia para que se possa descortinar a utilização falaciosa do Estado em prol de interesses mercantis diversos dos interesses individuais, sobretudo no momento em que o Brasil é bombardeado por interesses comerciais “maiores”, restando a conclusão de que “o pensamento dual (Estado e Direito), cuja origem filosófica pode ser rastreada na obra platônica, serve a propósitos políticos conservadores.” [35]

É evidente que a classe política não se descuidaria da possibilidade de utilizar o argumento “dos interesses de Estado” para justificar o estado de exceção fora da própria exceção constitucional. Os artigos de lei, atos normativos e projetos de lei a serem citados nesta breve monografia, sobretudo os que limitam o direito de greve, livre iniciativa, que expõe o bem público ao perigo de desvio (com a falta de transparência e rito seguro), que praticam a desinfecção social, vêm excepcionar a ordem constitucional, ainda que travestidos formalmente como instrumentos normativos escorreitos (leis).

É preciso acrescentar aqui outro fator que motiva e tenta justificar ações limitadoras de direitos constitucionais, bem como fomentam a direção da normatividade rumo a uma excepcionalidade constitucional: o risco possível de atentados terroristas ou ocorrências violentas que atinjam atletas, autoridades ou turistas envolvidos nos grandes eventos, com potenciais repercussões midiáticas. Diante desta possibilidade, que nunca deixou de estar presente, caminha-se para a criação voluntária de um estado de emergência[36].

Aos moldes do que ocorre nos Estados Unidos da América, com o USA Patriotic Act de outubro de 2001, a possibilidade da ocorrência de atentados terroristas, numa política de precaução[37], já se mostra capaz de excepcionar a ordem constitucional. Debord (2011, p. 185) alerta que, em casos como este:

As populações espectadoras não podem saber tudo a respeito do terrorismo, mas podem saber o suficiente para ficar convencidas de que, em relação a esse terrorismo, tudo mais deve lhes parecer aceitável, ou, no mínimo, mais racional e mais democrático.

Com esse viés, amparados ora sob a entidade do Estado e suas finalidades prioritárias e que exigem a sobreposição utilitarista, ora sob a urgência do capital que exige celeridade e efetividade na aplicação de suas medidas de usura, os poderes governamentais colocam em funcionamento a engrenagem do estado de exceção. As instituições democráticas são colocadas a serviço dos empreendimentos lucrativos de grandes instituições privadas, e o pacote de leis e atos normativos, na prática, visam garantir o respaldo para o êxito das ações da FIFA e seus patrocinadores, deixando um legado de violação aos princípios republicanos.

Relevante pormenorizar a legislação de exceção que se instalou no Brasil, selecionando, dentre vasto leque, a que apresenta maior potencial danoso, a partir do referencial teórico que apoia esta monografia.


3.1 Militarização

José Afonso da Silva (1997, p.692) enxerga o papel das Forças Armadas como indissociável da defesa das instituições democráticas e assim leciona:

Correlacionando a defesa das instituições democráticas e Forças Armadas é forçoso convir que estas ficaram, na perspectiva constitucional, como instituições comprometidas com o regime democrático inscrito na Constituição de 1988, em termos que já estudamos antes, o que torna mais grave qualquer desvio, ainda que circunstancial, que envolva desrespeito aos direitos fundamentais do homem, incluindo os individuais, os sociais (aí o direito de sindicalização e o de greve), os políticos e de nacionalidade. Nesse mesmo compromisso ficam envolvidos os órgãos da segurança pública.

Depreende-se que ao conjunto de instituições previstas pela Constituição Federal cabe parcela do exercício de poder, cada qual realizando seu mister em função dos interesses, bens e serviços públicos. Assim, às Forças Armadas, como citado, cabe o seu quinhão na dinâmica democrática, o que significa dizer que não podem ser utilizadas como substitutas dos órgãos regulares de segurança pública, salvo se em estado de exceção.

Garantir a segurança pública nas cidades-sedes dos megaeventos é muito mais do que posicionar militares com armas e blindados de guerra a cada cinquenta metros na Praia de Copacabana, nas margens da Lagoa da Pampulha ou sob os casarões históricos de Salvador.

Às Forças Armadas não competem prestar serviços de segurança pública em tempos de paz e de normalidade constitucional. Esta atribuição é expressamente destinada aos órgãos policiais elencados no art. 144, caput e incisos I a V, da Constituição Federal, no capítulo III – Da Segurança Pública:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal;
II - polícia rodoviária federal;
III - polícia ferroviária federal;
IV - polícias civis;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.

E não poderia ser de outro modo. A doutrina que fundamenta as Forças Armadas não é a mesma que sustenta as forças policiais, responsáveis pela segurança pública. Enquanto aquelas se preocupam, quando lidam com civis, com manutenção da ordem dominante, estas, desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) buscam sua raiz na defesa da cidadania e dos direitos fundamentais [38]:

O processo da construção de uma instituição policial se diferenciaria da instituição militar, de natureza bélica. O exército teria como pressuposto de atuação o máximo emprego da violência para abalar a coesão do inimigo na guerra. A instituição responsável pela polícia utilizaria o mínimo de força necessário para compelir à obediência individual e coletiva nos tempos de paz.

Essas são as palavras de Francis Albert Cotta, concluindo que caberia às polícias, e não aos militares, “produzir e sustentar a paz por meios pacíficos e civilizados”. [39]

É tempestivo denunciar uma deturpação do sistema policial brasileiro, antes de prosseguir.

O art. 144, em seu inciso V, traz a previsão da Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militares como órgãos da segurança pública, e não se pode ignorar a importância das polícias militares nesta estrutura. Numericamente, formam o maior contingente policial brasileiro. Inclusive, são tidas pelo texto constitucional, no §6º do mesmo art. 144, como “forças auxiliares e reserva do Exército”.

Considera-se a militarização dos órgãos de segurança pública, de per si, ainda que inscrita na Constituição Federal, um atavismo no sistema. Tal retrocesso é denunciado por Francis Albert Cotta, quando diz que as polícias brasileiras, em sua mais remota origem, ainda em épocas escravocratas, se distanciaram do caminho das polícias europeias em busca de uma proteção do indivíduo, e surgiram destinadas prioritariamente à manutenção da ordem desumana que existia ao sul do Equador. [40]

Se esta verdade sobre os primórdios das polícias brasileiras está magistralmente apresentada por Francis Albert Cotta, em seu livro “Matrizes do Sistema Policial Brasileiro” (2012), não é por outro motivo senão para denunciar um equívoco de origem, em prol de uma trilha mais ao sol, conforme atesta o Professor Andityas[41]:

Para que cheguemos sequer a cogitar uma polícia que vem, é preciso antes um rigoroso trabalho arqueológico capaz de revelar à polícia – e tal só pode ser, como toda verdadeira revelação, uma auto-revelação – as suas estruturas históricas e ideológicas, os seus determinismos, aporias e mitologemas.

Ao revés, em busca de uma polícia que volta, e não em prol de uma polícia que vem[42], trabalha o maestro Governo Federal em prol dos interesses mercantis dos megaeventos.

Comprova-se esta realidade através da Portaria 2.221, de 20/08/12, aqui de citação cogente:

Considerando que a Excelentíssima Senhora Presidenta (sic) da República, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso VI, alínea "a", da Constituição Federal, publicou o Decreto de 14 de janeiro de 2010 e o Decreto de 26 de julho de 2011, instituindo o Comitê Gestor da Copa do Mundo FIFA 2014 - CGCOPA, bem como o Decreto nº 7.682, de 28 de fevereiro de 2012, o qual altera o art. 5º do Decreto nº 7.538, de 1º de agosto de 2011, relacionando como Grandes Eventos: a Jornada Mundial da Juventude de 2013; a Copa das Confederações FIFA de 2013; a Copa do Mundo FIFA de 2014; os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016; e outros eventos designados pelo Presidente da República. Neste contexto, o Ministério da Defesa está autorizado a realizar o planejamento para o emprego temporário das Forças Armadas para atuar: nas áreas de Defesa Aeroespacial, de Controle do Espaço Aéreo, de Defesa de Áreas Marítima, Fluvial e Portuária, de Segurança e Defesa Cibernéticas, de Preparo e Emprego, de Comando e Controle, de Defesa Contra Terrorismo, de Fiscalização de Explosivos, de Forças de Contingência e de Defesa Contra Agentes Químicos, Biológicos, Radiológicos ou Nucleares; em ações complementares, quando for o caso; e em outras atribuições constitucionais das Forças Armadas, em todas as cidades-sede, durante os Grandes Eventos.

É preciso ter a clareza de que “o uso do exército para os trabalhos que são da alçada civil não pode ser uma solução de longo prazo", conforme recentemente declarou o Secretário de Defesa dos EUA, Leon Panetta[43]. Embora representante do país que se tem notabilizado pela militarização de diversas práticas civis, não deixa de ser uma assertiva coerente com o autêntico (e hoje mitológico) Estado Democrático de Direito.

O ideário de segurança pública, que a partir da Revolução Francesa passou a pedir (ao menos utopicamente) o modelo de “polícia cidadã” [44], resguardando a paz dos indivíduos e da garantia do exercício de seus direitos fundamentais, neste momento sofre, em nossa pátria, um profundo retrocesso. Contrariando uma otimista construção de uma polícia cidadã, que parece indicar a Constituição Federal de 1988 e suas previsões dirigentes, a coordenação da segurança pública passa excepcionalmente às mãos das Forças Armadas, conforme se vê na portaria assinada pela Presidente da República.

A portaria dá poderes amplos ao Ministério da Defesa para que atue “nas atividades compreendidas nos Grandes Eventos determinados pela Presidência da Republica”.

Sob o pretexto do exercício da “defesa”, utilizada com desprendimento na referida Portaria, alarga-se infinitamente o campo de atuação dos militares no período de exceção representado pelos megaeventos.

A opção militarizante adotada pela Presidência da República sofreu algumas tímidas críticas, como a do Colégio Nacional de Secretários de Segurança Pública – CONSESP[45]:

Segurança Pública é hoje um dos maiores anseios sociais em todos os recantos do país. Oportunidade de importantes melhorias como o aporte de legados posteriores aos grandes eventos não deve ser perdida, portanto o CONSESP vem a público manifestar sua preocupação com a questão, recomendando que a coordenação das referidas atividades de Segurança Pública continue sob a responsabilidade da Secretaria Especial de Grandes Eventos do Ministério da Justiça, com gestão compartilhada entre os Secretários de Estado de Segurança Pública do Brasil.

Orientando a opção do uso indevido das Forças Armadas em prejuízo dos órgãos constitucionais de segurança pública, a Presidência da República atropela a oportunidade de investimento nas polícias civis, a sua coordenação racional e integrada, e a capacitação dos órgãos policiais no exercício de sua função primordial. Os órgãos policiais são preteridos e levados ao descrédito com a militarização declarada.

O Ministro da Defesa, Celso Amorim, diante da repercussão da decisão da presidente de passar a coordenação da segurança dos Grandes Eventos às Forças Armadas, “fez questão de ressaltar que a Defesa não quer tomar a função de ninguém. Mas, se a juízo da Presidenta (sic) da República, as Forças Armadas devam ser acionadas, seja em um papel supletivo ou principal, nós estaremos presentes, estaremos ajudando”. [46]

Sintomático observar que os Decretos de 14 de janeiro de 2010 e 26 de julho de 2011, instituindo o Comitê Gestor da Copa do Mundo FIFA 2014 - CGCOPA, bem como o Decreto nº 7.682, de 28 de fevereiro de 2012, o qual altera o art. 5º do Decreto nº 7.538, de 1º de agosto de 2011, buscam seu substrato legitimador no Decreto 3.897, datado de 24/08/2001, que “fixa as diretrizes para o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem”.

O art. 2º do referido Decreto, sinaliza:

Art. 2º É de competência exclusiva do Presidente da República a decisão de emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem.

Aqui está a janela para a excepcionalidade constitucional e o uso das Forças Armadas em contradição com as funções institucionais democráticas. Pela própria localização topográfica da previsão das Forças Armadas na Constituição (no capítulo antecedente reservado à segurança pública, sem nenhuma hierarquia funcional sobre esta, no mesmo título “Da Defesa do Estado e Das Instituições Democráticas”), é intuitivo a sua impossibilidade de atuação em substituição aos órgãos permanentes e democráticos de segurança pública.

A estreia dos megaeventos no Brasil não traz em si a necessidade do uso das Forças Armadas, senão no exercício arbitrário da força militar como “opção de se manter a ordem e o controle por meio de mecanismos repressivos num ambiente em que pessoas são consideradas coisas” [47], em prol da garantia do retorno próspero de investimentos para os patrocinadores aliados da FIFA e do Governo Federal.

Opta-se pela falsa aparência de que a segurança pública está sob controle. Vitimizada, a Segurança Pública encontra-se em perigo, na verdade.

Exercício da pura violência[48].

Até mesmo o malfadado Decreto 3.897/2001 somente admite o uso das Forças Armadas para a garantia da “lei e da ordem” quando “esgotados os instrumentos a isso previstos no art. 144 da Constituição”.

Também a Lei Complementar nº 97, de 09 de junho de 1999, que dá amparo ao decreto acima, em seu artigo 15, §2º delineia estreitos limites ao uso das Forças Armadas, nos mesmos moldes:

§ 2º A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal.

§ 3º Consideram-se esgotados os instrumentos relacionados no art. 144 da Constituição Federal quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional.

Curiosamente, tentou-se em vão encontrar amparo constitucional para a previsão do art. 15, §2º, da Lei Complementar nº 97, de 09 de junho de 1999, que por sua vez é sustentáculo do Decreto 3.897/2001. A determinação de regulação por lei complementar prevista no art. 142, § 1º, da Constituição apenas assim dispõe: “Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.” E ponto final.

Em nenhum momento a Constituição Federal entrega às Forças Armadas qualquer ascensão sobre os órgãos de segurança pública ou possibilita a invasão de competências. Quando no artigo 142, in fine, evocam-se as Forças Armadas na “garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” não é senão na perspectiva democrática. A Constituição não permite uma leitura autofágica de sua estrutura.

Coube à tendência repressiva do legislador complementar colocar a democracia sobre o cadafalso.

A Lei Complementar nº 97/99 e o Decreto 3.897/2001, nos artigos comentados, são flagrantemente inconstitucionais.

Ainda assim, as polícias brasileiras não cumprem com sua função institucional? Não parece que seja o caso. Constitui, antes, uma opção à margem dos princípios constitucionais a escolha da Presidência da República de lançar mão das Forças Armadas em prejuízo dos órgãos policiais constitucionalmente desenhados para tal fim. Opção a favor do mercado, em prejuízo da normalidade democrática. Uma legislação de exceção, portanto.

Em seus estudos sobre Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Canotilho (1994, p. 63) sentencia:

A aporia da vinculatividade constitucional insiste na contradictio: por um lado, o legislador deve considerar-se materialmente vinculado, positiva e negativamente, pelas normas constitucionais; por outro lado, ao legislador compete “actualizar” e “concretizar” o conteúdo da constituição. Perante este “paradoxo”, a proposta a antecipar é a seguinte: o direito constitucional é um direito não dispositivo, pelo que não há âmbito ou liberdade de conformação do legislador contra as normas constitucionais nem discricionariedade na não actuação da lei fundamental. (...) Em termos sintéticos: a não disponibilidade constitucional é o próprio fundamento material da liberdade de conformação legislativa.

Em que pese o “caráter militar da polícia brasileira e seu foco na manutenção da ordem” (COTTA, 2012, p. 23), não seria exagero imaginar que caminhava-se a passos lentos, diga-se (antes destes últimos ataques aos órgãos policiais), para a construção de uma polícia democrática e desmilitarização do corpo policial[49]. No entanto, a sociedade do espetáculo que transformou a democracia na “liberdade ditatorial do Mercado, temperada pelo reconhecimento dos Direitos do homem espectador” (DEBOR, 1997, p. 11), exige neste momento, e agora por estar no centro do palco midiático, sem soluções racionais que suportem dialogar com os princípios individuais consagrados, o subjugo à autoridade dos militares. O que poderia não ser exagero (desmilitarização), demonstra ter sido ingenuidade.

Nesta perspectiva, é importante realçar que a ilegalidade (corrupção, envolvimento em milícia, assassínios etc) dos agentes de segurança pública, propagados diuturnamente pela imprensa, não podem ser motivo para o decreto de apoderamento das atribuições dos órgãos policiais. À ilegalidade do servidor, num estado democrático, cabem as vias regulares de punição e exclusão dos quadros da corporação. E nem esta ilegalidade é tão perversa quanto a ilegalidade institucional, que fere de morte a Constituição Federal, e contra a qual, no atual estado de coisas, não há antídotos.

Em que pese não haver nenhuma ameaça externa, ou grave e iminente instabilidade institucional, ou mesmo qualquer calamidade de grandes proporções na natureza (afinal, “Deus é Brasileiro”), o mercado internacional, personificado na FIFA e seus patrocinadores, exige que as Forças Armadas, por precaução, protejam a todos de eventuais ameaças e até mesmo do futuro incerto.

O vice-almirante José Carlos Mathias, Comandante do 7º Distrito Naval em Brasília, em declaração sobre o treinamento dos fuzileiros navais que participarão do controle dos megaeventos, resume bem a missão das Forças Armadas[50]:

O nosso objetivo é evitar que haja, que se atrapalhe [...] que as pessoas, até por curiosidade, possam atrapalhar o andamento normal dos jogos. O importante para nós [...] é que o ator principal são (sic) as competições, são os jogos, são os jogares de futebol, ou seja, o espetáculo é que tem que prevalecer.

Esta precaução, que justifica medidas excepcionais em “defesa do Estado”, é assim tratada por Gonzalo Velasco Arias:

O dispositivo de risco que, por um lado, assume a absoluta incerteza do futuro; por outro lado, ele estrutura o presente em função da previsão de um acontecimento catastrófico. A precaução dispõe a realidade em função da possibilidade de uma con­tingência catastrófica cujo advento não se pode conhecer. O risco que representa é o de “pior cenário possível” no qual se produziriam danos irreparáveis. Em consequência, o nível de risco tolerado é nulo [...] [51].

Veja-se que a Portaria citada, não se contenta com os Grandes Eventos previstos para 2013 e 2014, trazendo uma cláusula de extensão que alarga a já excepcional e inconstitucional invasão militar na segurança pública e no campo de atribuições dos órgãos policiais: “outros eventos designados pelo Presidente da República.” [52]

Em verdade, tal alargamento é dado pelo Decreto nº 7.682, de 28 de fevereiro de 2012, que altera o art. 5º do Decreto nº 7.538, de 1º de agosto de 2011, acrescentando o inciso V: “outros eventos designados pelo Presidente da República”.

Imperioso encerrar este tópico citando a clareza do art. 12 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão:

Artigo 12º- A garantia dos direitos do Homem e do Cidadão carece de uma força pública; esta força é, pois, instituída para vantagem de todos, e não para utilidade particular daqueles a quem é confiada. (grifo nosso)

3.2 Violação à soberania e coordenação de dados sigilosos pela FIFA

Além de um retorno ao apoio da força militar para controle da ordem, e aqui não há como afastar as lembranças dos anos de chumbo anteriores à Constituição Federal[53], algumas regras elementares de segurança da informação e política de sigilo institucional serão quebradas, em favor da entidade privada que domina os lucros do futebol profissional.

O artigo 13 da Lei 12.663, de 05 de junho de 2012 - Lei Geral da Copa prevê que o credenciamento dos envolvidos com os eventos FIFA será realizado por ela, o que significa, ao que tudo indica, que esta entidade privada será a partir de então detentora de um acervo que vulnera a soberania nacional[54], vez que fragiliza o sistema de segurança vigente.

Segue a íntegra do dispositivo legal:

Art. 13. O credenciamento para acesso aos Locais Oficiais de Competição durante os Períodos de Competição ou por ocasião dos Eventos, inclusive em relação aos Representantes de Imprensa, será realizado exclusivamente pela FIFA, conforme termos e condições por ela estabelecidas.

No Planejamento Estratégico de Segurança para a Copa do Mundo de 2014, da lavra do Ministério da Justiça – Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos, no seu item 11.3 – Credenciamento, corrobora o mandamento do artigo acima citado[55]:

O conceito de credenciamento para a Copa do Mundo de 2014 será desenvolvido pelo Comitê Organizador Local (COL), respeitadas as exigências da FIFA, para assegurar a preparação e a execução dos eventos. O credenciamento deve garantir que todos os indivíduos envolvidos na operação sejam corretamente identificados e possuam direito de acesso para exercer as suas funções e cumprir suas atribuições.

Todo policial federal, civil, militar, guarda municipal, agente de fiscalização imbuído de poder de polícia, que esteja designado para os trabalhos junto aos eventos deverá, necessariamente, fornecer seus dados de qualificação ao big brother FIFA.

Esta espécie de informação, por raciocínio comezinho, é sigilosa e deve se restringir à instituição que coordena o agente de segurança. Com tais dados em mãos é possível fazer um mapa preciso, quantitativo e qualitativo, de nossa segurança pública. Tais dados são estratégicos para a segurança da República Federativa do Brasil e a sua divulgação indevida, por lesar e expor a perigo de lesão a soberania nacional, recebe o tratamento especial da Lei 7.170, de 14 de dezembro de 1983 – Lei de Segurança Nacional, que em seu artigo 13 tipifica a conduta de quem expõe dados sigilosos de interesse do Estado:

Art. 13 - Comunicar, entregar ou permitir a comunicação ou a entrega, a governo ou grupo estrangeiro, ou a organização ou grupo de existência ilegal, de dados, documentos ou cópias de documentos, planos, códigos, cifras ou assuntos que, no interesse do Estado brasileiro, são classificados como sigilosos.

Apenas sob a premissa da legislação de exceção e da visão crítica de que, sob as ordens do capital, o Estado se tornou um servo, é possível fazer a leitura de tais dispositivos sem sobressalto.

O Comitê Organizador Local (COL), vinculado ao Comitê Organizador Brasileiro, é pessoa jurídica brasileira de direito privado, constituída na forma de sociedade limitada (Ltda.) e com regramentos previstos nos artigos 1.052 e seguintes do Código Civil. De onde tal sociedade privada tirou a autoridade para alcançar o status e poder de credenciar, desenvolver as regras do credenciamento e manter em bancos de dados todo o cadastro das autoridades de segurança pública envolvidas nos megaeventos, senão na confirmação de que o capital domina os governos? Não há a necessidade de soberania, não há necessidade de resguardo de dados confidenciais e compartilhamento?

Nas premonitórias palavras de Debord (1997, p. 139), “A necessidade de dinheiro é a verdadeira necessidade produzida pela economia política, e a única necessidade que ela produz”.

Ana Carrasco-Conde, corrobora tais suspeitas[56]:

¿Qué poder es este que maneja los hilos? No el de um país, no el de um “primer mundo”, sino el de un grupo, ajeno em princípio a toda ideología, que extiende sus tentáculos allí donde puede tener una influencia que le permita la consecución de sus fines y que se mueve por el principio de la ganancia privada a corto plazo.


3.3 Regime diferenciado de contratações públicas
Foi alardeado que com os Grandes Eventos o Brasil se transformará, com obras públicas de infraestrutura, oportunidades de emprego, propaganda da marca Brasil aos quatro cantos do mundo, tudo graças à economia. Diga-se, a economia tem ditado os últimos cinco debates de candidatos à presidência da República Federativa do Brasil e os números dela são hoje o verdadeiro termômetro de eficiência e boa gestão, esquecendo-se que “a economia transforma o mundo, mas o transforma apenas em mundo da economia” (DEBORD, 2011, p. 30).

Desde que anunciados o cronograma dos chamados megaeventos, e com vistas a assegurar o retorno dos investimentos das empresas que explorarão a economia do país neste período, o Brasil está sob a vigília dos prazos da FIFA e do Comitê Olímpico Internacional, que são entidades privadas, ditando os rumos da política e dos recursos públicos.

Algumas flexibilizações da legislação saltam aos olhos como sintoma deste estado de exceção, trazido pela urgência do capital e corroboram a assertiva de que “a formação da vontade política coincide agora plenamente com a do capital, legitimada por meio dos representantes políticos das populações”. [57]

Mais um exemplo é a Lei 12.462, datada de 04 de agosto de 2011, que institui o RDCP – Regime Diferenciado de Contratações Públicas:

Regime diferenciado de contratações públicas, aplicável exclusivamente às licitações e contratos necessários à realização:

I - dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, constantes da Carteira de Projetos Olímpicos a ser definida pela Autoridade Pública Olímpica (APO); e

II - da Copa das Confederações da Federação Internacional de Futebol Associação - FIFA 2013 e da Copa do Mundo FIFA 2014, definidos pelo Grupo Executivo - GECOPA 2014 do Comitê Gestor instituído para definir, aprovar e supervisionar as ações previstas no Plano Estratégico das Ações do Governo Brasileiro para a realização da Copa do Mundo FIFA 2014 - CGCOPA 2014, restringindo-se, no caso de obras públicas, às constantes da matriz de responsabilidades celebrada entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios;

III - de obras de infraestrutura e de contratação de serviços para os aeroportos das capitais dos Estados da Federação distantes até 350 km (trezentos e cinquenta quilômetros) das cidades sedes dos mundiais referidos nos incisos I e II.

IV - das ações integrantes do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) V - das obras e serviços de engenharia no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS.

A flexibilização da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, adotada pela novel e excepcional legislação traz desde seu nascedouro questionamentos quanto à sua constitucionalidade. Impulsionada pelo discurso da celeridade e diante da premente necessidade de atender ao calendário da FIFA[58] a lei instituidora de tal regime diferenciado é discutida em duas ações diretas de inconstitucionalidade, a saber: ADIS nº. 4645/DF e nº 4655/DF, ambas distribuída ao Ministro Luiz Fux, aguardam pacientemente seus julgamentos, que provavelmente se darão post festum, por óbvio, ao se constatar que as grandes obras afetadas pelo Regime Diferenciado de Contratações já estão em fase de inauguração por todo o país.

A petição inicial da ADI 4645/DF questiona o chamado “contrabando legislativo”, já que “a Presidência da República, em consórcio com a maioria governista no Congresso Nacional” lançou mão da inclusão do Regime Diferenciado de Contração, por emenda do relator, quando tramitava na Câmara dos Deputados, no bojo da Medida Provisória 527, convertida na Lei 12.462/11, aqui discutida.

A Medida Provisória 527 nada dizia sobre licitação e contratos públicos. “Dispunha sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, criação da Secretaria de Aviação Civil, alteração da Lei da ANAC e da INFRAERO, criação de cargos em comissão, bem como contratação de controladores de tráfego aéreo”, conforme denuncia a petição inicial. Gol de mão da FIFA, validado.

Não teria sido a primeira tentativa de inclusão do regime de exceção de contratação para os interesses dos grandes eventos e de seus parceiros (aqui certamente representados pelos consórcios de construtoras) em outras medidas provisórias. A petição inicial da ADI acusa as tentativas frustradas de utilização do mesmo subterfúgio na tramitação das Medidas Provisórias 489, 503, 511, 517 e 521.

O Supremo Tribunal Federal já assentou, no julgamento da medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade - ADI 1050 MC/SC, sob a relatoria do Ministro Celso de Mello que:

O poder de emendar projetos de lei - que se reveste de natureza eminentemente constitucional - qualifica-se como prerrogativa de ordem político-jurídica inerente ao exercício da atividade legislativa. Essa prerrogativa institucional, precisamente por não traduzir corolário do poder de iniciar o processo de formação das leis (RTJ 36/382, 385 - RTJ 37/113 - RDA 102/261), pode ser legitimamente exercida pelos membros do Legislativo, ainda que se cuide de proposições constitucionalmente sujeitas à cláusula de reserva de iniciativa (ADI 865/MA, Rel. Min. CELSO DE MELLO), desde que - respeitadas as limitações estabelecidas na Constituição da República - as emendas parlamentares (a) não importem em aumento da despesa prevista no projeto de lei, (b) guardem afinidade lógica (relação de pertinência) com a proposição original e (c) tratando-se de projetos orçamentários (CF, art. 165, I, II e III), observem as restrições fixadas no art. 166, §§ 3º e 4º da Carta Política. (gripo nosso)

Além do aspecto formal de regular tramitação legislativa da Medida Provisória 527 e sua conversão na Lei nº 12.462/01, a ADIN 4645/DF questiona a inconstitucionalidade dos artigos abaixo enumerados, que insultam os princípios estampados no art. 37 da Constituição[59], sobretudo a moralidade, publicidade e legalidade:

Livre delegação ao executivo do regime jurídico de contratação a ser aplicado, art. 1º e art. 65.

A regra imposta pelo art. 37, inciso XXI, é o da obrigatoriedade da licitação como princípio da administração pública. A ressalva se dá apenas em virtude de lei, em espaço deliberativo, portanto, que pontuará os casos específicos que fujam à regra. A Constituição não permite a entrega de tal discricionariedade ao executivo.

Art. 1º É instituído o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), aplicável exclusivamente às licitações e contratos necessários à realização:

I - dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, constantes da Carteira de Projetos Olímpicos a ser definida pela Autoridade Pública Olímpica (APO).

Art. 65. Até que a Autoridade Pública Olímpica defina a Carteira de Projetos Olímpicos, aplica-se, excepcionalmente, o disposto nesta Lei às contratações decorrentes do inciso I do art. 1º desta Lei, desde que sejam imprescindíveis para o cumprimento das obrigações assumidas perante o Comitê Olímpico Internacional e o Comitê Paraolímpico Internacional, e sua necessidade seja fundamentada pelo contratante da obra ou serviço.

Presunção de sigilo do custo das obras, Art. 6º, §3º. Aqui há a quebra do mandamento constitucional do art. 37, que privilegia a publicidade. Sem a transparência e a publicidade na aplicação dos recursos públicos, abre-se a possibilidade para toda a sorte de abusos e desvios.

Dispensa de publicação no diário oficial, Art. 15º, §2º.

Antes de citarmos os artigos da lei de exceção, citamos BOBBIO (2009, p. 100):

Um dos princípios fundamentais do Estado constitucional: o caráter público é a regra, o segredo a exceção, e mesmo assim é uma exceção que não deve fazer a regra valer menos, já que o segredo é justificável apenas se limitado no tempo, não diferindo neste aspecto de todas as medidas de exceção.

Eis amostras do estado de exceção, em função do capital:

Art. 6º Observado o disposto no § 3º, o orçamento previamente estimado para a contratação será tornado público apenas e imediatamente após o encerramento da licitação, sem prejuízo da divulgação do detalhamento dos quantitativos e das demais informações necessárias para a elaboração das propostas.

§ 3º Se não constar do instrumento convocatório, a informação referida no caput deste artigo possuirá caráter sigiloso e será disponibilizada estrita e permanentemente aos órgãos de controle externo e interno.

Art. 15. Será dada ampla publicidade aos procedimentos licitatórios e de pré-qualificação disciplinados por esta Lei, ressalvadas as hipóteses de informações cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, devendo ser adotados os seguintes prazos mínimos para apresentação de propostas, contados a partir da data de publicação do instrumento convocatório:

§ 1º A publicidade a que se refere o caput deste artigo, sem prejuízo da faculdade de divulgação direta aos fornecedores, cadastrados ou não, será realizada mediante:

I - publicação de extrato do edital no Diário Oficial da União, do Estado, do Distrito Federal ou do Município, ou, no caso de consórcio público, do ente de maior nível entre eles, sem prejuízo da possibilidade de publicação de extrato em jornal diário de grande circulação; e

§ 2º No caso de licitações cujo valor não ultrapasse R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais) para obras ou R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) para bens e serviços, inclusive de engenharia, é dispensada a publicação prevista no inciso I do § 1º deste artigo.

Em semelhante linha, Roberto Gurgel, Procurador Geral da República, também impulsionou a ADI nº 4655, provocado pelo Grupo de Trabalho Copa do Mundo FIFA 2014 da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal[60], denunciando as afrontas ao processo legislativo constitucional e a princípios constitucionais. Diversos artigos da lei de exceção são combatidos nesta ação direta de inconstitucionalidade e saltam aos olhos as extravagâncias fora dos limites permitidos pela “normalidade democrática”.

Em pesquisa sobre o tema, encontrou-se o vídeo intitulado “Megaeventos – Grandes Obras e seu Impacto Urbano Social”, onde a crítica à falta de transparência no processo de construção dos estádios na Copa do Mundo da África do Sul é lembrada e comparada à atual situação brasileira[61]:

Outra lição que o Brasil pode aprender é que deve haver o máximo de transparência nos acordos com a FIFA. Demorou cinco anos para descobrirmos isso. Não deixe seu amor pelo futebol, sua paixão pelo jogo, ofuscar o debate racional que deve ocorrer sobre como o dinheiro é gasto, como a democracia funciona, e como os cidadãos deveriam ser os responsáveis por decidir sobre as medidas a serem tomadas.


3.4 Cerceamento do direito de greve

Fazendo coro à legislação de exceção a ser implementada quando da passagem do show business da FIFA e seus patrocinadores pelo país do futebol, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei 728/2011 que, elasticamente:

Define crimes e infrações administrativas com vistas a incrementar a segurança da Copa das Confederações FIFA de 2013 e da Copa do Mundo de Futebol de 2014, além de prever o incidente de celeridade processual e medidas cautelares específicas, bem como disciplinar o direito de greve no período que antecede e durante a realização dos eventos, entre outras providências.

É preciso perceber que a passagem do capital internacional e de seus investidores pelo país não permite qualquer incômodo a suas aplicações. A mera possibilidade de manifestações da sociedade organizada por meio de sindicatos e associações de servidores/empregados tenta ser abafada por uma legislação casuística, impulsionada nos corredores do Congresso Nacional pela vontade do Governo, manietado pelos interesses de lucros dos agentes capitalistas.

Criminaliza-se o direito constitucional de greve, num atentado de olímpica força contra a democracia.

Norberto Bobbio já registrou tal fenômeno antidemocrático:

De qualquer modo, uma coisa é certa: os dois grandes blocos de poder descendente e hierárquico das sociedades complexas – a grande empresa e a administração pública – não foram até agora sequer tocados pelo processo de democratização. E enquanto estes dois blocos resistem à agressão das forças que pressionam a partir de baixo, a transformação democrática da sociedade não pode ser dada por completa. Não podemos sequer dizer que esta transformação é realmente possível.

O direito de greve, previsto como direito fundamental do individuo, está expresso no artigo 9º da Constituição Federal, da seguinte forma:

Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.

§ 1º - A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.

§ 2º - Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei.

Ao discorrer sobre o direito de greve, José Afonso da Silva registra:

Não é um simples direito fundamental dos trabalhadores, mas um direito fundamental de natureza instrumental e desse modo se insere no conceito de garantia constitucional, porque funciona como meio posto pela Constituição à disposição dos trabalhadores, não como um bem auferível em si, mas como um recurso de última instância para a concretização de seus direitos e interesses. [62]

É também esfera elementar de participação dos indivíduos, como coletividade com coincidência de anseios na formação social. Criminalizar tal direito/conduta é inviabilizar mais um canal de legitimidade da construção comunitária, é impedir que o sujeito seja agente de sua história[63].

Justamente quando mais se necessita da participação popular, sobretudo através da sociedade organizada, para pressionar o rumo da governança no sentido das finalidades preconizadas pela Carta de Princípios pactuada em 1988, deixa-se à margem da lei qualquer iniciativa que possa representar protesto contra a violência da voracidade neoliberal.

A greve, ultima ratio de trabalhadores hipossuficientes frente à burocracia autoritária e empresas privadas, direito social historicamente conquistado, ameaça ser atingido de frente caso o Projeto de Lei 728/2011 seja convertido em mais uma lei de exceção.

O direito de greve não pode ser inviabilizado por limites legais abusivos.

Segundo a doutrina de José Afonso da Silva (1997, p. 294):

A lei não pode restringir o direito mesmo, nem quanto à oportunidade de exercê-lo nem sobre os interesses que, por meio dele, devam ser defendidos. Tais decisões competem aos trabalhadores, e só a eles. Diz-se que a melhor regulamentação do direito de greve é a que não existe. Lei que venha a existir não deverá ir ao sentido de sua limitação, mas de sua proteção e garantia.

Em seus estudos e, acredita-se, sem imaginar que a legislação recrudesceria para a proteção do capital e seus investimentos, José Afonso da Silva já alertava que a nova ordem constitucional instaurada não limitou o direito de greve quanto à natureza da atividade ou serviços essenciais, como fazia a velha ordem. Tão somente cabe à lei “definir quais serviços e atividades sejam essenciais e dispor sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.” [64]

A circunstância elucidada por José Afonso da Silva evidencia que a legislação ordinária não pode reduzir os limites de fruição do direito a ponto de estancar a viabilidade de seu exercício.

Também conhecido como o AI-5 da Copa, o Projeto de Lei 728/11 traz em seu artigo 42 a nomenclatura “serviços ou atividades de especial interesse social”, a partir da qual relaciona em sua abrangência uma série de categorias que terão o direito de greve seriamente diminuído no período que, por toda argumentação já trazida, podemos chamar de ditadura transitória da FIFA.

A relação trazida pelo artigo 42 citado é de larga abrangência e engessa qualquer reivindicação trabalhista por meio do instrumento da greve dos profissionais que operam no(a): tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; assistência médica e hospitalar; distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos; operação, manutenção e vigilância de atividades de transporte coletivo; coleta, captação e tratamento de esgoto e lixo; telecomunicações; controle de tráfego aéreo; operação, manutenção e vigilância de portos e aeroportos; serviços bancários; hotelaria, hospitalidade e serviços similares; construção civil das obras destinadas aos eventos ou de mobilidade urbana; prestação judicial e de segurança pública.

Sobre este tópico, o atual art. 10 da Lei 7.783, de 28 de junho de 1989, terá considerável alteração com o novel art. 42 do Projeto de Lei 728/2011 acima citado. A disciplina dos serviços considerados de necessidade inadiáveis à comunidade teve seu norte voltado à necessidade de manutenção do espetáculo da FIFA e das ocorrências que possam circundar os eventos. Foram acrescentados casuisticamente nesta categoria os profissionais de hotelaria, hospitalidade e serviços similares, também da construção civil, “no que se refere” (sic) a obras destinadas aos eventos de que trata o projeto ou de mobilidade urbana.

Caso haja movimento grevista dos profissionais dos serviços considerados de necessidade inadiáveis para a FIFA, além da comunicação a entidade patronal com 15 dias de antecedência, a categoria de trabalhadores terá que garantir o funcionamento de 70% da força de trabalho, “garantindo o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade e da organização dos eventos”, nos termos dos artigos 43 e 44 do afrontoso Projeto de Lei.

A palavra “comunidade” falseia os interesses do conglomerado de empresas que exploraram o dinheiro que circundará os megaeventos, em detrimento de pessoas desfavorecidas e no mais das vezes vilipendiadas na relação de trabalho.

Momento de grandes lucros para as empresas (multinacionais, em sua maioria) que administram os eventos, momento de imposição do silêncio para empregados (brasileiros, em sua maioria) que fazem os eventos acontecerem. A contenção da voz do indivíduo empregado sufoca a voz que poderia gritar contra os abusos, garante a tranquilidade do capital, dilapidando direitos fundamentais.

Gol de mão da FIFA, em vias de ser validado.

Aos servidores públicos, com tratamento do direito de greve complementado pela norma do art. 37, inciso VII (“o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica”), o Supremo Tribunal Federal despendeu nos Mandados de Injunção nºs 708 e 712 tratamento para garantia do direito de greve, ainda que sem a lei reguladora exigida pela Constituição e inexistente pela morosidade parlamentar. Na ausência de referida lei, atende-se ao direito de greve com a aplicação da Lei 7.783/89 e a possibilidade de que o juiz, à luz do caso concreto, adote regime mais severo, “sem desconsiderar, entretanto, a garantia do exercício do direito.” [65]

Nos termos da decisão da Suprema Corte, nos autos da Reclamação nº 15.511 MC/MG, de relatoria do Ministro Teori Zavascki:

Considerada a evolução jurisprudencial do tema perante o STF, em sede do mandado de injunção, não se pode atribuir amplamente ao legislador a última palavra acerca da concessão, ou não, do direito de greve dos servidores públicos civis, sob pena de se esvaziar direito fundamental positivado. (...) O legislador poderia adotar um modelo mais ou menos rígido, mais ou menos restritivo do direito de greve no âmbito do serviço público, mas não poderia deixar de reconhecer direito previamente definido pelo texto da Constituição. (...) Ao julgar o MI 708, esta Corte decidiu que, em atenção ao princípio da continuidade dos serviços públicos, o legislador pode adotar regimes mais severos para o exercício do direito, a depender da essencialidade do serviço, mas jamais o poder discricionário quanto à edição, ou não, de lei que garanta o exercício do direito de greve.

Depreende-se, pois, a evolução histórica do Supremo Tribunal Federal convergindo para o resguardo do direito de greve, em que pese o assédio dos detentores do poder. Data de 02/04/13 a decisão, por unanimidade, de concessão da liminar na reclamação citada.

Em vista da reconhecida inércia do legislador em regular o direito de greve dos servidores, o STF amadureceu sua postura em defesa do trabalhador estatutário, chancelando, ainda que com parâmetros, a legalidade dos movimentos grevistas. Isto se deu pela desídia do parlamento que perdura há 25 anos.

Após um quarto de século inerte quanto à regulação do direito de greve do servidor público, o Congresso Nacional ameaça, para as categorias eleitas pela FIFA como prioritárias para o funcionamento de seus entretenimentos (sobretudo os incisos III, VI, VIII, IX e XIII do art. 42 do projeto de lei), inviabilizar o gozo da prerrogativa social.

A regulação dada pelo Projeto de Lei 728/2011, ainda que sob o disfarce das “necessidades inadiáveis da comunidade”, inviabiliza o direito de greve, em prol dos interesses momentâneos das entidades privadas envolvidas, sendo, portanto, inconstitucionais e demonstrando o caráter de excepcionalidade da ordem jurídica material já exposta ao longo desta monografia.

Ademais, o embuste de rotular o direito de greve como mera “extorsão salarial junto ao governo”, como sintomaticamente declarou ao tempo da elaboração deste trabalho o assessor especial do Ministro da Justiça, Marcelo Veiga, desconsidera a clássica diversidade do direito atacado[66]:

Quer dizer, os trabalhadores podem decretar greves reivindicativas, objetivando a melhoria das condições de trabalho, ou greves de solidariedade, em apoio a outras categorias ou grupos reprimidos, ou greves políticas, com o fim de conseguir as transformações econômico-sociais que a sociedade requeira, ou greves de protestos.

Em exemplo recente, o colunista José Roberto Ferro chama a atenção para a última e maior greve da história da Polícia Federal, em artigo intitulado: “Greve por mais eficiência no setor público” [67]. Nesta greve, ocorrida em 2012, junto a outras reivindicações, estava "a reestruturação de processos de trabalho ineficientes, a exemplo da maior parte das investigações, com o aproveitamento pleno das competências dentro do órgão, quebrando a centralização burocrática”.

Como já alertara Antonio Giménez Merino, na atual ordem capitalista mundial os direitos fundamentais “estão sendo feridos de morte por novas restri­ções à liberdade de informação, associação, reunião e ma­nifestação das pessoas, sobretudo daquelas que se opõem à barbárie neoliberal.” [68]

A greve, justamente por ser um instrumento de pressão por mudanças e meio legítimo de sublevação em prol dos interesses de uma parcela da sociedade, só possui razão de ser quando há a possibilidade real de confronto com os interesses dominantes. Sem o incômodo, ou a partir do momento em que a manifestação de reivindicação passa a ser canalizada de forma a não trazer prejuízo ou percalço no percurso da maioria manietada, perde seu sentido, por esvaziar toda a sua possibilidade de eficácia. Em outras palavras, limitar até a impossibilidade o direito de greve equivale a marginalizar tal direito, deixando à ilegalidade[69] o uso da previsão constitucional. Com a manobra aqui denunciada, sob as vestes da legalidade, da necessidade pública, da celeridade e dos proveitos econômicos prometidos a toda a nação, o estado de exceção da ordem normativa se faz presente, e o capital soberano se mostra sem pudor, ditando os rumos. Novamente, vale lembrar Antonio Giménez Merino:

A realidade da nova regulação econômica mundializada – dominada por uma poliarquia e articulada mediante as regras da governança – se impôs definitiva­mente aos velhos mecanismos estatais de controle jurídico que limitavam sua atuação.

Adotando a mesma linha repressiva dos governos da Europa e dos EUA, após os movimentos populares conhecidos como Movimento 15-M e Occupy Wall Street, sob o discurso da precaução[70], o Estado, como disserta Merino (2012):

[...] fazendo uso de sua função primordial de manter a ordem, responde à contestação social – à ação organizativa, mas principalmente à propositiva – mediante a estratégia do medo: criminalizando as organizações so­ciais críticas e as novas formas de resistência civil pacífica, isolando os movimentos sociais mediante a associação sim­bólica dos mesmos com a violência e o caos, ressaltando as condições para uma regulação mais restritiva dos direitos políticos básicos que não sejam os de escolher periodicamen­te representantes da vontade geral (reunião, manifestação, associação, liberdade de comunicação etc.).

A adoção desta postura despolitiza a sociedade, no momento em que impede o exercício de um legí­timo instrumento de participação política, qual sejam a greve e seus corolários movimentos de pressão política.

Naredo (apud MERINO, 2012) arremata:

Si, como ha venido siendo habitual, el Gobierno decide y actúa sin tener en cuenta a la ciudadanía, evita el debate en los propios órganos delibera­tivos del Estado a través de oscuras componendas extraparlamentarias u otros ardides y no incentiva, sino que castiga, las iniciativas ciudadanas de participación, control y legislación, ese Gobierno no debe llamarse democrático, sino despótico o autocrático, por mucho que fuera votado en su día por una minoría suficiente del censo electoral.

Dentre os vários argumentos da persuasão exitosa no presente estado de exceção, está o argumento utilitarista[71] do crescimento econômico advindo de tais espetáculos.

Michael Sandel demonstra que a ideia de que “ao determinar as leis ou diretrizes a serem seguidas, um governo deve fazer o possível para maximizar a felicidade da comunidade em geral” se torna falaciosa, já que “os direitos e a dignidade humana têm uma base moral que transcende a noção de utilidade” [72].

O mesmo autor, crítico perspicaz do utilitarismo, traz à reflexão o conto The Ones Who Walked Away from Omelas, da autora Ursula K. Le Guin.

O conto fantástico supõe a realidade de uma cidade bela e feliz, onde todos os moradores vivem contentes e com sorrisos estampados nos rostos, tudo funciona. A exceção se encontra em um porão mal iluminado, onde está uma criança malnutrida e abandonada. Embora todos saibam da existência da criança que sofre continuamente, sabem também que a felicidade e paz de todos e de cada um “dependem inteiramente do sofrimento abominável da criança”.

Que coincidência entre a personagem ficcional e a realidade dos que sofrem para que o dinheiro seja feliz nos Grande$ Evento$?

Neste ponto e partindo desta reflexão, é forçoso tratar de outra ramificação do estado de exceção instaurado para regozijo da FIFA e seus patrocinadores, que é a política de desinfecção das cidades sedes, também conhecida como “higienização urbana” ou ainda “faxina social”.
3.5 Higienização urbana

É cediço que a Constituição Federal, em seu artigo art. 6º, estampa como direito fundamental o direito à moradia[73], pressuposto elementar da aferição do respeito à dignidade da pessoa humana. Quando assim o faz em seu título sobre os Direitos Sociais, faz em consonância com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que em seu artigo 22 determina[74]:

ARTIGO 22

Direito de Circulação e de Residência

1. Toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado tem direito de circular nele e de nele residir conformidade com as disposições legais.

Direito reconhecido e conquistado nos países que buscam ainda que idealmente uma ordem jurídica protetora do indivíduo, o direito à moradia não pode ser dissociado do direito à liberdade.

Jaime Melanias dos Santos, em pesquisa histórica sobre o conceito de moradia, em dissertação de mestrado, conclui que:

O direito à moradia, antes mesmo de ser reconhecido como direito social em razão da Emenda Constitucional nº 26, já era previsto como consequência da proteção de outros direitos fundamentais, dentre eles o próprio direito à vida e à propriedade, ou o direito à inviolabilidade do domicílio, ou à inviolabilidade da vida privada. De igual modo, o direito à moradia emergia do princípio da dignidade da pessoa humana. A moradia, então, ainda que não expressamente reconhecida como direito distinto, era protegida em nível constitucional como resultado da proteção de outros direitos e como elemento necessário à dignidade do indivíduo.

A moradia está ligada com a escolha do indivíduo de, em determinado lugar, pousar sua vida e ali compartilhar com a vizinhança e com o espaço físico contextual sua existência. Quando se elege a moradia, ainda que carente de rebuscamentos ou luxo, a riqueza que um ser humano ali planta é de valor afetivo e dotado de valores que defluem de sua dignidade.

Assim que o Pacto de São José da Costa Rica defende, em diferentes artigos, o direito à moradia, à escolha da moradia e a realização de vida que o indivíduo tem a partir desta escolha:

Artigo 11 – Proteção da honra e da dignidade

1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.

2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.

3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.

Artigo 21 – Direito à propriedade privada

1. Toda pessoa tem direito ao uso e gozo de seus bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao interesse social.

2. Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, salvo mediante o pagamento de indenização justa, por motivo de utilidade pública ou de interesse social e nos casos e na forma estabelecidos pela lei.

3. Tanto a usura, como qualquer outra forma de exploração do homem pelo homem, devem ser reprimidas pela lei.

Artigo 22 – Direito de circulação e de residência

1. Toda pessoa que se encontre legalmente no território de um Estado tem o direito de nele livremente circular e de nele residir, em conformidade com as disposições legais.

3. O exercício dos direitos supracitados não pode ser restringido, senão em virtude de lei, na medida indispensável, em uma sociedade democrática, para prevenir infrações penais ou para proteger a segurança nacional, a segurança ou a ordem públicas, a moral ou a saúde públicas, ou os direitos e liberdades das demais pessoas. (...)

O uso regular do espaço urbano ou rural para ali assentar sua residência recebe, por meio do reconhecimento da usucapião (art. 183 da CF), a afirmação de sua importância na vida do indivíduo. Em defesa da dignidade do sujeito e de sua família, formaliza-se a propriedade daquele que ininterruptamente, pelo prazo legal e nas condições estabelecidas, reside em determinado local e ali faz sua moradia[75].

Os dispositivos citados deveriam ser suficientes para, com a coerência que deve nortear o ordenamento jurídico, afastar qualquer possibilidade de remoção urbana arbitrária ou higienização social em prol da limpeza exigida pela FIFA e seus parceiros comerciais, quando da realização dos grandes eventos.

Defender os princípios constitucionais que deveriam estar clarividentes como normas ínsitas a uma sociedade democrática e que se pretende justa, tem-se demonstrado um trabalho árduo e infrutífero.

De acordo com o Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas, entre 150 mil e 170 mil pessoas sofrem o risco de remoção forçada de suas residências[76], para darem lugar às obras dos megaeventos.

Não obstante a mobilização das associações de moradores atingidos pela chamada higienização social, o documentário intitulado “Megaeventos – Grandes Obras e Seu Impacto Urbano Social” [77] denuncia que tais deslocamentos da população pobre já se encontram em plena realização.

O urbanismo capitalista se distancia do humanismo.

O relato pormenorizado desta realidade encontra-se registrado no atual dossiê “Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro” [78], produzido pelo combativo Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, aqui já mencionado.

Não é noutro sentido a denúncia de Debord de que “o urbanismo é a tomada de posse do ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao desenvolver sua lógica de dominação absoluta, pode e deve agora refazer a totalidade do espaço como seu próprio cenário”. [79]

Vê-se que esta reconstrução não aceita a presença dos despossuídos que, com a valorização de espaços residenciais pela demanda do capital, são literalmente expropriados, com auxílio da burocracia totalitária, e transferidos para áreas distantes, sem infraestrutura razoável, completamente alienados de sua história de vida, distantes de seu meio social, alijados, enfim, de sua dignidade[80].

Neste sentido, a higienização social empreendida pelos governos das cidades sedes, em contraste com os princípios constitucionais e sem a leitura devida das leis de planejamento urbano com a consectária dignidade da pessoa humana, acrescenta “provas e exemplos mais pesados e mais convincentes” à tese de que a sociedade do espetáculo vê “a Terra como mercado mundial”. (DEBORD, 1997, p. 29)

CONCLUSÃO

A decisão de realização no Brasil de megaeventos abriu a possibilidade ímpar de enxergarmos com clareza o que se vê diuturnamente escondido sob o manto da mentira: vivemos um estado de exceção permanente.

Em que pese a existência de uma Constituição promulgada e vigente, a torrencial legislação de exceção que regula sem interferências grande parte das relações de nossos cidadãos, destes com os poderes instituídos e com as empresas que dominam o mercado, não deixam dúvidas sobre esta assertiva.

Vimos neste trabalho que, através de normativos com “força-de-lei”[81], os direitos fundamentais inscritos pelo constituinte em 1988 são deixados à margem, sem pudor.

Foram criados argumentos que embasam a retórica de que os megaeventos deixarão um legado de crescimento econômico para toda a população. Amparados nesta construção, os abusos estão ocorrendo, com pouca ou nenhuma resistência.

A análise feita a partir da legislação de exceção que prolifera em nosso país, desde os primeiros preparativos para a realização dos megaeventos, leva-nos a conclusões nada otimistas sobre o atual estágio de nosso propagado Estado Democrático de Direito.

A Constituição Federal tem sucumbido frente à torrente de agressões, e não tem conseguido, com os mecanismos por ela previstos, dar guarida aos indivíduos que nela buscam segurança, tampouco manter sua própria higidez democrática, já que é ela própria outra vítima da barbárie mercantilista.

A doutrina constitucionalista nacional e alienígena, por vezes aqui citada, vive um momento de autismo e não tem sucesso em, apesar da racionalidade, coerência e embasamento científico, munir o Estado Constitucional, que perece frente à mentira e a persuasão enganosa.

A única voz de comando que se houve ditando nossos dias é o grito espetacular das leis do mercado e, especificamente, dos patrocinadores e organizadores dos grandes eventos.

O objetivo desta monografia foi gritar que “o rei está nu”. Colecionamos a legislação de exceção, confrontando com as normas e princípios constitucionais que as impediriam (numa normalidade constitucional) e demonstramos que, ao final, a força do poder econômico está a vencer.

Nesta hora, em que o poder econômico (quase um Deus) usa as instituições de nossa República como títeres, esta singela monografia buscou profanar[82] o significado dos megaeventos.

Apesar do argumento falacioso do legado dos megaeventos para o país, não conseguimos enxergar herança que supere o prejuízo da violação de nossa ordem constitucional.

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Notas

[1] A elaboração desta monografia foi contemporânea à realização da Copa das Confederações 2013.
[2] Convertidos “assim em empresas de serviços políticos do poder econômico que as financia –, com os consequentes problemas de corrupção e clientelismo que os desacreditam frente aos olhos da população.” (MERINO, 2012, p. 59)
[3] “Onde domina a voluntas e não a lex, temos não um rei, mas um tirano” (BOBBIO, 2008, p. 205)
[4] País conhecido pela neutralidade histórica, nada neutra.
[5] Importante lembrar uma frase de Guy Debord que não absolve a maioria que se aquieta: “do jeito que a passividade faz a cama, nela se deita” (DEBORD, 2011, p. 162)
[6] Frase inscrita pela Nike, “parceira comercial” do Governo Federal, no interior da camisa oficial da Seleção Brasileira de Futebol. Propaganda disponível no site governamental: http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2013/01/31/novo-uniforme-da-selecao-brasileira-e-apresentado Acesso em 10/05/13.
[7] DEBORD, 2011, p. 175
[8] “Tese VIII: A tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado de exceção" no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso. (...)” Citada tese se encontra discutida no livro Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses "Sobre o conceito de história" (LÖWY, 2005, p. 83).
[9] Nas palavras do crítico que cunhou o termo: “reino autocrático da economia mercantil que acedera ao status de soberania irresponsável e o conjunto das novas técnicas de governo que acompanham esse reino.” (DEBORD, 2011, p. 168)
[10] KELSEN, 1998, p. 247
[11] SILVA, 1997, p. 692 e 693
[12] SILVA, 1997, p. 693 e 694
[13] “La Constitución puede ser suspendida sin dejar de tener validez, pues la suspensión solamente significa una excepción concreta.” (SCHMITT, 1968, p. 182)
[14] Não desconhecemos “a impossibilidade de se continuar qualificando de “democrá­tico” o Estado de Direito, salvo de modo superficial e inicial”, conforme alerta feito por Antonio Giménez Merino (2012)
[15] SCHMITT, 1968, p. 73
[16] “O regime democrático não tolera nem admite a opressão da minoria por grupos majoritários. É evidente que o princípio majoritário desempenha importante papel no processo decisório que se desenvolve no âmbito das instâncias governamentais, mas não pode legitimar, na perspectiva de uma concepção material de democracia constitucional, a supressão, a frustração e a aniquilação de direitos fundamentais, como o livre exercício da igualdade e da liberdade, sob pena de descaracterização da própria essência que qualifica o Estado democrático de direito. (...) Com efeito, a necessidade de assegurar-se, em nosso sistema jurídico, proteção às minorias e aos grupos vulneráveis qualifica-se, na verdade, como fundamento imprescindível à plena legitimação material do Estado Democrático de Direito, havendo merecido tutela efetiva, por parte desta Suprema Corte, quando grupos majoritários, por exemplo, atuando no âmbito do Congresso Nacional, ensaiaram medidas arbitrárias destinadas a frustrar o exercício, por organizações minoritárias, de direitos assegurados pela ordem constitucional (...)” (BRASIL, STF RE 477554/MG – Rel. Celso de Mello)
[17] “Em tempos de crise, o governo constitucional deve ser alterado por meio de qualquer medida necessária para neutralizar o perigo e restaurar a situação normal. Essa alteração implica inevitavelmente, um governo mais forte, ou seja, o governo terá mais poder e os cidadãos menos direitos.” (ROSSITER, 1948, p. 5 apud AGAMBEN, 2004, p. 21)
[18] São princípios constitucionais expressos, conforme art. 34, inciso VII, alínea a: “forma republicana, sistema representativo e regime democrático.”
[19] O objetivo desta monografia não é abordar detalhadamente os institutos do estado de defesa e sítio previstos em nossa Constituição e minudenciado pela doutrina nacional. Apenas tratamos aqui de alguns aspectos julgados úteis na contraposição ao estado de exceção permanente e à legislação de exceção específica que colecionamos.
[20] “La dictadura comisarial suspende la Constitución in concreto, para proteger la misma Constitución en su existencia concreta.” (SCHMITT, 1968, p. 181)
[21] AGAMBEN, 2004, p. 20 apud  Friedrich, 1941, p. 828
[22] No texto Kelsen Contra o Estado, Andityas Soares de Moura Costa Matos trabalha a hipótese de que a obediência cega à autoridade pode advir da transferência do ideário do “pai tribal – ao mesmo tempo temido e adorado.” MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Kelsen contra o Estado. &
[23] “Só gente da mídia pode responder a todas as asneiras que são apresentadas espetacularmente, através de respeitosas retificações ou admoestações; e, mesmo assim, com parcimônia. Pois, além de sua extrema ignorância, existe a solidariedade, de profissão e de alma, com a autoridade geral do espetáculo e com a sociedade que ele expressa, que torna para essa gente um dever, e também um prazer, o fato de nunca se afastar da autoridade, cuja majestade não deve ser lesada.” (DEBORD, 1997, p. 179)
[24] Segundo DEBORD (1997, p. 200), estes qualificativos seriam “o conjunto que constitui uma espécie de paleta dos tons que convêm a um retrato da sociedade do espetáculo”.
[25] Lembramos que “sem instituições materiais capazes de tornar efetivos os direitos, eles existem apenas no plano simbólico.” (MERINO, p. 58)
[26] SILVA, 19, p. 695.
[27] Citaremos no devido momento os instrumentos normativos de exceção.
[28] O próprio Merino antevê esta aproximação entre a crise europeia e o caminho adotado pelo Brasil, dizendo: “alguns aspectos, tais como a culminância da economia baseada no crédito, na expansão do setor da construção, na importan­te dependência dos investimentos externos ou mesmo no clientelismo que corrói o aparato burocrático desses países, os aproxima, mais do que parece, de nossa problemática.” (MERINO, 2012)
[29] A necessidade não tem lei.
[30] KELSEN, Hans. Deus e Estado. In: Contra o Absoluto. Perspectivas Críticas, Políticas e Filosóficas da Obra de Hans Kelsen. Org. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Curitiba: Juruá Editora, 2011. Disponível em: http://www.senado.gov.br/senado/biblioteca/servicos/getSumario.asp?cod=4527&tipo=A Acesso em 18/06/13
[31] “Filos. Ficção ou abstração falsamente considerada como real.” HOLANDA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986, p. 899.
[32] KELSEN, Hans. Deus e Estado, p. 52.
[33] LÖWY, 2005, p. 83
[34] KELSEN, Hans. Deus e Estado, p. 53.
[35] MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Kelsen contra o Estado, p. 75.
[36] “A criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos.” (AGAMBEN, 2004, p.13)
[37] Na lição de Arias (2012), o princípio da precaução, adotado pelas políticas estatais nos dias de hoje, “toma como variáveis o “pior cená­rio possível”, a catástrofe de danos irreparáveis e a incerteza absoluta. Nesta impossibilidade tanto de negar quanto de conhecer a catástrofe, toda circunstância é suscetível de ser percebida como excepcional, legitimando intervenções fora da lei internacional. A discricionariedade não existe porque os dispositivos da “segurança humanitária”, o “direito de intervenção internacional” e o “risco de precaução” permi­tem perceber qualquer circunstância como uma emergência excepcional, como estado de exceção que requer uma ação para além daquelas contempladas pela norma internacional.”
[38] COTTA, 2012, p. 26
[39] COTTA, 2012, p. 45
[40] COTTA, 2012, p. 27 e 33
[41] MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Esplendor e exceção: entre o golpe de estado permanente e a polícia que vem. Prefácio ao livro de COTTA, Francis Albert. Matrizes do sistema policial brasileiro. Belo Horizonte: Crisálida, 2012.
[42] “Neste sentido, à política que vem e ao direito que vem, aludidos por Agamben, parece imprescindível acrescentar uma polícia que vem, por mais que o termo possa parecer incrivelmente paradoxal. Uma polícia que vem, desativada de suas funções violentas – quais sejam, pôr e manter o direito – e entregue ao uso comum e não sacrificial é, sem dúvida nenhuma, algo problemático e difícil de concebermos. Entretanto, parece ser factível pensarmos assim na medida em que a polícia se reconfigure já não mais como aparelho de Estado, mas enquanto corpo comum servidor da causa da cidadania – claro, da cidadania que vem e não dessa aí que temos hoje, envolvida até o pescoço com a violência mantenedora do direito.” MATOS, 2012, p. 19
[43] Disponível em http://exame.abril.com.br/mundo/noticias/exercito-nao-deve-ser-policia-diz-panetta-no-uruguai Acesso em 19/05/13
[44] COTTA, 2012, p. 26
[45] Disponível em http://oglobo.globo.com/rio/secretarios-sao-contra-forcas-armadas-na-coordenacao-de-grandes-eventos-5867154 Acesso em: 19/05/13
[46] Disponível em http://www.adesg.net.br/noticias/forcas-armadas-poderao-participar-da-coordenacao-de-seguranca-de-grandes-eventos-internacionais-previstos-para-o-pais Acesso em: 19/05/13
[47] Na exata medida apontada por COTTA (2012, p. 70), quando descreve o uso militar para a perpetuação da escravidão.
[48] “Em todos os casos, o estado de exceção marca um patamar onde lógica e praxis se indeterminam e onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real.” (AGAMBEN, 2004, p. 63)
[49] Cite-se como indício desta trilha a Lei Delegada Estadual nº 56, de 29 de janeiro de 2003, do Estado de Minas Gerais, orientada na direção do “sistema integrado de defesa social.”
[50] Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=GJe8sc1APTo Acesso em 27/05/13
[51] ARIAS, Gonzalo Velasco. Legalidade imunitária: riscos democráticos da prevenção do imprevisível. In: Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 105, 2012, p. 208.
[52] Portaria 2.221, datada de 20 de agosto de 2012, do Ministério da Defesa.
[53] Há tão poucos anos vivemos a ditadura e, no entanto, abrimos espaço para que ela floresça, como se não tivéssemos memória: “O primeiro intuito da dominação espetacular era fazer sumir o conhecimento histórico geral; e, em primeiro lugar, quase todas as informações e todos os comentários razoáveis sobre o passado recente.” (DEBORD, 1997, p. 177)
[54] “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania. (...)”
[55] Disponível em http://blog.justica.gov.br/inicio/wp-content/uploads/2012/07/Planejamento-Estrategico-SESGE.pdf Acesso em: 10/05/13
[56] CARRASCO-CONDE, Ana. Blow-up. Evento, acontecimiento, crisis. CADAHIA, Luciana; VELASCO, Gonzalo (orgs.). Normalidad de la crisis/crisis de la normalidad. Madrid: Katz, pp. 129, 2012.
[57] MERINO, Antonio Giménez. A crise europeia: excepcionalidade, gestão autoritária e emergência de formas ativas de resistência civil. In: Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 105, p. 52, 2012.
[58] “A minha confiança no Brasil é baseada na firme responsabilidade assumida pelos governadores e prefeitos em cumprir com os seus compromissos na garantia de que todos os seis estádios da Copa das Confederações da FIFA estarão concluídos até meados de abril (...)” são as palavras de Jérôme Valcke, Secretário Geral da FIFA. O artigo, intitulado “Caminhando juntos no ritmo certo”, além de depositar a confiança no Brasil em conseguir cumprir servilmente a cartilha FIFA, reclama das incipientes críticas que o estado de exceção instaurado vem recebendo: “É muito difícil entender por que, em um país que vive e respira futebol e onde em breve torcedores estarão apoiando as melhores seleções do planeta, algumas poucas pessoas continuam a enxergar apenas aspectos negativos, mesmo que não haja nada de negativo.” Disponível em http://pt.fifa.com/worldcup/organisation/secretarygeneralcolumn/newsid=1999489/index.html e no site governamental http://www.portaldacopa.gov.br/pt-br/noticia/jerome-valcke-ressalta-confianca-na-entrega-das-arenas-para-copa-das-confederacoes Acesso em 22/05/13. 
[59] “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.” Constituição Federal de 1988.
[60] Grupo de Trabalho que parece discordar do $ecretário Geral da FIFA, Jérôme Valcke, otimi$ta amante do futebol e dos grande$ evento$ FIFA, que não quer ver nada de negativo na legislação de exceção instaurada ao arrepio da nossa fustigada Constituição.
[61] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=MLXe8011Gbg Acesso em 20/05/13.
[62] SILVA, 1997, p. 294.
[63] “O sujeito da história só pode ser o ser vivo produzindo a si mesmo, tornando-se mestre e possuidor de seu mundo que é a história, e existindo como consciência de seu jogo.” (DEBORD, 1997, p. 50)
[64] SILVA, 1997, p. 295
[65] Reclamação 15511 MC/MG
[66] SILVA, 1997, p. 295
[67] Disponível em http://epocanegocios.globo.com/Informacao/Visao/noticia/2012/09/greve-por-mais-eficiencia-no-setor-publico.html Acesso em 23/05/13
[68] MERINO, 2012, p. 52
[69] “Redemocratizar a ordem caótica atual – refletida nas decisões irracionais e suicidas que caracterizam a própria gestão da crise – passa necessariamen­te por certa indisciplina em relação à legalidade instituída.” (MERINO, 2012)
[70] “Diante da certeza de que é impossível obter um conhecimento certo sobre o futuro, as medidas preventivas radicalizam seu vigor autodisciplinar. Os ter­mos do político são, a partir de então, redefinidos por um medo baseado no risco e na incerteza que, inclusive, modi­ficam a lógica do Direito Penal. Que o Estado preventivo contemporâneo gera excesso de controle sobre a sociedade civil, na qual segurança e direitos entram em conflito, é uma constatação fática bastante abordada pelas ciências sociais nos últimos anos.” ARIAS, Gonzalo Velasco. Legalidade imunitária: riscos democráticos da prevenção do imprevisível. In: Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 105, 2012, p. 189.
[71] Sandel explica que “Bentham, filósofo moral e estudioso das leis, fundou a doutrina utilitarista. Sua ideia central é formulada de maneira simples e tem apelo intuitivo: o mais elevado objetivo da moral é maximizar a felicidade, assegurando a hegemonia do prazer sobre a dor. De acordo com Bentham, a coisa certa a fazer é aquela que maximizará a utilidade.” SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Trad. Heloisa Matias e Maria Alice Máximo, 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p 48.
[72] SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Trad. Heloisa Matias e Maria Alice Máximo, 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 48 e 53.
[73] “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” CF
[74] Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969.
[75] Arts. 183 e 191 da Constiuição Federal de 1988
[76] Disponível em http://comitepopulario.wordpress.com/ Acesso em 23/05/13
[77] Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=MLXe8011Gbg Acesso em 23/05/13
[78] Disponível em http://comitepopulario.files.wordpress.com/2013/05/dossie_comitepopularcoparj_2013.pdf Acesso em 23/05/13
[79] DEBORD, 1997, p. 112
[80] Autêntico intérprete dos oprimidos pelo capital, Adoniran Barbosa, já em outra época, alardeava o que hoje prolifera como política de Estado e de seus parceiros comerciais: “Despejo na Favela: Quando o oficial de justiça chegou/Lá na favela/E contra seu desejo entregou/pra seu Narciso/um aviso pra uma ordem de despejo/Assinada seu doutor/assim dizia a petição/dentro de dez dias quero a favela vazia e os barracos todos no chão/É uma ordem superior/Ôôôôôôôôô meu senhor/é uma ordem superior/Não tem nada não seu doutor/não tem nada não/Amanhã mesmo vou deixar meu barracão/Não tem nada não seu doutor/vou sair daqui/pra não ouvir o ronco do trator/Pra mim não tem problema/em qualquer canto me arrumo de qualquer jeito me ajeito/Depois o que eu tenho é tão pouco/minha mudança é tão pequena que cabe no bolso de trás/Mas essa gente aí, hein? como é que faz?” Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=0NCvDg6E3JQ Acesso em 23/05/13
[81] “É determinante que, em sentido técnico, o sintagma "força de lei" se refira, tanto na doutrina moderna quanto na antiga, não à lei, mas àqueles decretos - que têm justamente, como se diz, força de lei – que o poder executivo pode, em alguns casos - particularmente, no estado de exceção - promulgar.” AGAMBEN, 2004, p. 60.
[82] “A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde sua aura e acaba restituído ao uso. Ambas as operações são políticas, mas a primeira tem a ver com o exercício do poder, o que é assegurado remetendo-o a um modelo sagrado; a segunda desativa os dispositivos do poder e devolve ao uso comum que ele havia confiscado.” AGAMBEN, 2007, p. 68.

ABSTRACT: This monograph is the result of research conducted from a piece of legislation exception inserted in our legal system as a way of enabling, out of which allows our Federal Constitution and its principles, the so-called mega events. Seeks to confront the exceptional legislation with the idealized democratic state, demonstrating that, in the end, we live in a state of exception performed by the capital and the established powers, servants of that capital. The peculiar context experienced by Brazil, focus of attention of the world media, and so well, under increasing pressure from economic interest groups at the expense the values preconized in the Constitution, allows a moment of odd record, leaving the clear alignment diverse legitimate constitutional interpretation.



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