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sexta-feira, 19 de agosto de 2011

A dimensão do silêncio


Por Tadeu Breda | ilustração: Thiago Vaz



Após folhear a última página de 100 Fotografias: Juan Rulfo, é inevitável não querer abrir imediatamente Pedro Páramo ou Chão em chamas e devorar, em palavras, o que nossos olhos acabaram de apreciar em imagens.


Isso, claro, para quem preferiu conhecer as fotografias antes da obra literária de um dos maiores autores latino-americanos do século XX. Jeito curioso de se enfrentar pela primeira vez a Juan Rulfo. A maioria dos poucos brasileiros que já ouviu falar nele sabe que se trata de um escritor mexicano. Se se prestaram a ler algo de sua reduzida obra, terão sabido que foi um dos precursores do realismo fantástico – e farão a associação automática com Gabriel García Márquez, que veio depois. E o que mais?


Sim, excelentes fotografias. “Juan Rulfo é o melhor fotógrafo que conheci na América Latina”, escreveu a filósofa norte-americana Susan Sontag, autora do clássico Sobre Fotografia, após tomar contato com os instantâneos revelados pelo olhar do escritor. Eis uma biografia ultrarresumida de Juan Rulfo: foi um dos maiores manejando pena e câmera, impressionando espíritos não apenas ao sul do Rio Bravo, mas também além de idiomas e oceanos.


Apesar de ter alcançado a tão almejada universalidade, porém, Juan Rulfo nasceu provinciano a não poder mais. Veio à luz no pequeno vilarejo de Sayula, no Estado mexicano de Jalisco, em maio de 1917. Os bolcheviques estavam prestes a tomar o poder na Rússia, mas sete anos antes o México já tinha dado início à sua própria Revolução. O triunfo de Emiliano Zapata e Pancho Villa, porém, ainda não mexia com as emoções do pequeno Juan – pelo menos não tanto quanto a desestruturação prematura de sua família. Seu pai foi assassinado quando Rulfo tinha seis anos. Sua mãe não suportou a perda do marido e pereceu pouco tempo depois, antes que o filho chegasse aos dez.


“Só conheci a morte”, é o que diz sobre a infância. Conheceu também uma religiosidade profunda, porque, órfão, mudou-se com os irmãos para o povoado vizinho de San Gabriel e ficou aos cuidados da avó. “A casa era uma espécie de extensão da igreja local, e o padre praticamente vivia ali”, conta Andrew Dempsey, um dos organizadores de 100 Fotografias. “A impressão que se tem é de uma infância solitária, atenuada pela irmã e os irmãos do escritor, que nunca perdeu o apego pelo tipo de povoado ou vilarejo representado por San Gabriel, ou pela paisagem ao redor.”
A tríade catolicismo-provincianismo-solidão parece fundamental para entender não só a literatura de Juan Rulfo, mas também o universo mexicano cuja alma é dissecada em seus livros. E sua fotografia pode até tentar, mas não escapa dos três pilares que definem sua narrativa.


Se Pedro Páramo, na definição do próprio autor, é uma história de mortos, contada por um morto a outro morto, numa cidadezinha morta, boa parte das 100 Fotografias que a editora CosacNaify traz ao público brasileiro retratam, senão a morte, uma profunda e irremediável desolação. E isso já na capa: mãe e filha caminhado pelas ruas desertas de um vilarejo que não é mais. Só de bater o olho na cena já somos tomados pelo desconsolo. Mas, por quê?


Os textos e as fotos de Juan Rulfo contam (não só, mas principalmente) a história mais recôndita de uma realidade que já não faz parte da rotina dos moradores das grandes cidades, ou mesmo das cidades de médio porte, latino-americanas. Por vezes, parecem imagens perdidas na primeira metade do século XX, quando as benesses do progresso apenas começavam a maravilhar os habitantes do Novo Mundo.


As fotos de Juan Rulfo ganham desconcertante atualidade, porém, quando nos damos conta de que a ruína humana e material ali retratadas ainda são realidade para uma grande parcela da população mundial – e mexicana. Basta trilhar os caminhos tortuosos das montanhas selvagens de Chiapas, no sul do país, para deparar-se com camponeses e indígenas vivendo como há décadas, em cabanas sem eletricidade ou saneamento, enquanto no disputado litoral caribenho turistas gastam milhares de pesos em diárias luxuosas de hotel.


“A prata do México, junto com a prata e o ouro do Peru, fizeram a riqueza da Europa, não apenas da Espanha, e deixaram comunidades sem desenvolvimento verdadeiro, cuja tragédia ainda arrastamos”, disse Juan Rulfo numa entrevista. Fora dos grandes centros, a paisagem mexicana não raro continua assemelhando-se à atmosfera capturada pelo clique do escritor.


Como fotógrafo, Juan Rulfo dedicou não poucos rolos de filme a imortalizar construções. Sejam os resquícios do esplendor maia e asteca, que espalhou pirâmides pelo país, sejam as estruturas desgastadas da arquitetura espanhola e crioula, que salpicou o território mexicano com igrejas – muitas delas tão fortificadas que não conseguem esconder o caráter militarista da evangelização. A maioria das imagens publicadas em 100 Fotografias traz templos, muralhas, esculturas, edifícios, povoados, cidades – e ruínas, muitas ruínas.
“Para a maioria das pessoas, não seria fácil encontrar a razão desse interesse em Rulfo, mas podemos avançar um pouco se lembrarmos que sua inclinação para a literatura e a fotografia esteve sempre acompanhada por uma paixão pela história do México”, escreve Víctor Jiménez, arquiteto, amigo e conhecedor do trabalho fotográfico do escritor.


Intrometer-se apenas pela obra imagética de Juan Rulfo pode dar a impressão de que, até sua morte, em 1986, este foi um homem com os pés bem fincados na realidade nua e crua. Ainda mais depois de saber que, na plena maturidade dos 64 anos, Juan Rulfo escreveu: “A missão do fotógrafo é entregar-nos objetivamente a verdade, cruel, bela ou desumana que seja, de uma sociedade que todos fatalmente construímos a nosso redor.”


Mas limitar nossa visão ao alcance dos olhos é perder de vista o que há de sobrenatural – e mágico – na obra rulfiana. Se os pés descalços dos camponeses e as pedras desgastadas revelam um artista perpassado pelo sofrimento da vida forjada nos rincões mais afastados do país, a experiência da morte em tão tenra idade irá oferecer ao realismo de Juan Rulfo uma ampla e inconteste fantasia.


“Na realidade, era fantástico”, disse o escritor guatemalteco Augusto Monterroso sobre a obra do autor. “Num dado momento, Kafka e Rulfo deram-se as mãos sem que nós, perdidos em outros labirintos, nos déssemos conta.”
Se é assim na literatura, não seria muito diferente na fotografia. As ruínas capturadas por Juan Rulfo remetem à história concreta ao mesmo tempo em que se dedicam a divagar sobre a magia que ainda paira por um presente que recusa renovar-se. Ao retratar o paredão de fuzilamento, o escritor não fala apenas das vidas que deixaram de existir após o impacto dos projéteis – lembra também que a alma dos que partiram continuam a penar diante dos muros cravejados de bala.


“As fotos desta orquestra na qual não há músicos, na qual o vento é o céu, são fotos metafísicas”, acredita o fotógrafo mexicano Héctor García. “Quando fotografa a névoa entre essas ruínas, Rulfo está falando também dos espíritos que habitam esses lugares, essas casas que não existem mais.”


Curiosamente, o homem que estendeu seu prestígio literário para o mundo das imagens – e recebeu as maiores honrarias dentro e fora do México por sua exímia habilidade em ambas disciplinas – fazia questão de dizer: “Não sou fotógrafo.” Uma pista para acreditar que, talvez, as fotos de Juan Rulfo não se interessem pelas formas em si.


Apesar de ter clicado incessantemente sobre paisagens e construções, e de revelar preocupações estéticas em seus retratos, o escritor parece haver fotografado apenas aquilo que pertencia a seu universo intelectual – aquilo que entrevê alguma profundidade. No entanto, o universo interior de Juan Rulfo (provinciano e universal, desolado e militante, católico e cético) jamais poderia ser enunciado pela superficialidade da fotografia. Há quem diga que o escritor teria optado pela literatura porque a câmera, sozinha, não lhe permitia dizer tudo que necessitava dizer.


“O drama e a glória da fotografia consistem em sua incapacidade de penetrar a fundo, de captar o essencial que está além da opacidade da superfície, a não ser à luz da consciência que somente a literatura pode fornecer: sem esse conhecimento, as fotografias ficariam confinadas ao campo da estética”, define Daniele de Luigi num dos textos introdutórios de 100 Fotografias.


Aqui, pois, emerge a quietude. Na frieza concreta do preto e branco das imagens, Juan Rulfo parece haver encontrado a melhor maneira de exprimir o elemento que perpassa Pedro Páramo do início ao fim, mas que, para o bem da literatura, foi sobreposto pelo murmúrio constante dos mortos que se recusam a descansar em paz. “Na fotografia, Rulfo encontrou talvez a verdadeira dimensão do silêncio.” –tadeu breda(cc)


Fonte: Latitude Sul

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