Avenida Ipiranga, 895, São Paulo. A menos de cinquenta metros da esquina com a São João formiga, em miniatura, um possível novo quilombo de Zumbi. Em 3 de outubro, 1200 pessoas ocuparam a estrutura que já serviu a um hotel elegante e a um bingo rasqueiro, mas jazia abandonada. Em poucas horas, quinze pavimentos encheram-se de vidas – humildes, porém desejosas. No mesmo dia, quatro outros prédios do centro foram habitados, numa ação coordenada pela Frente de Luta pela Moradia (FLM).
Os ocupantes vêm de longe. Os da Ipiranga viviam, até outubro de 2009, num terreno grilado, no Jardim Alto Alegre, confins da Zona Leste. A Justiça atendeu pedido do suposto proprietário e a polícia agiu feroz. Barracos destroçados por tratores, os moradores buscam, desde então, um lugar na cidade. Protestaram, fecharam acordo com a prefeitura, ficaram na mão. A quase-esquina com a São João é o novo endereço de sua lida.
Por lá, aprumam-se. Habitam os quartos do velho hotel, mas os salões do bingo – transformados em cozinha e creche – são a vida desse seu lugar. Equipes revezam-se para garantir, a partir das quatro da matina, o abastecimento (contribui a solidariedade de comerciantes do Mercado Central). Há, para todos, quatro refeições – almoço e jantar à base de arroz, feijão e salada de folhas e legumes. Com apoio para o cuidado dos filhos, e o mercado de trabalho aquecido, muitos já se empregaram na região. Desenvolveu-se até o esboço de uma economia local: num ambiente de nítida maioria feminina, moradoras anunciam, por meio cartazes, serviços de manicure…
A força da grana destrói coisas belas. Não se sabe por que motivo a Camargo Correia possui o ex-bingo – mas é certo que não o quer habitado. A pedido da construtora, um juiz determinou o despejo – “reintegração de posse”, na língua dos togados e dos engravatados. Marcada para 25 de novembro, ela revela como as metrópoles brasileiras repelem de suas zonas “nobres” as maiorias, expulsas para regiões longínquas.
A expulsão choca-se com uma reivindicação emergente. “Temos o direito ao Centro”, afirma Maria Aparecida de Fátima, a Maria do Planalto, líder singular da ocupação. Participante há vinte anos dos movimentos pela moradia, ela expressa uma reivindicação emergente. “A elite nos vê como incômodo. Mas nós construímos a infra-estrutura que torna a vida confortável aqui: redes de água, esgoto, energia; telefone e internet; ruas calçadas, praças, jardins, edifícios. Por que razão não poderíamos desfrutar”?
Maria lembra que há cerca de 400 prédios sem uso no centro de São Paulo, segundo um estudo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (a FAU) da USP. Embora a propriedade deva, segundo a Constituição, atender “a sua função social”, tais imóveis permanecem vazios. Sujos e pixados, transformam-se aos poucos em ruína urbana. Seus proprietários acumulam dívidas tributárias que em muitos casos superam o valor do edifício. A prefeitura não os incomoda. Mas as ocupações revelam que as maiorias podem não estar dispostas a tolerar o apartheid social e a impunidade. A eventual “reintegração de posse” de um edifício será capaz de frear a pressão social?
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Outras Palavras acompanha de forma especial a vida e a luta na Ipiranga, 895. Um grupo de jovens jornalistas e estudantes produz textos, vídeos, fotos e áudios que serão transformados, numa peça transmidiática. O trabalho é a fase final de um seminário intitulado “Mídias Livres na era digital”. Organizado no âmbito do Ponto de Cultura Escola Livre de Comunicação Compartilhada, articulado pelo site, o seminário desdobrou-se em oficinas semanais realizadas entre maio e novembro.
Uma parte do material já produzido está disponível – ainda em fase de pré-edição – neste blog (http://ocupacao.outraspalavras.net), especialmente criado. Aqui é possível encontrar, por exemplo:
> Sequências de fotos que retratam os e lixo encontrados pelos atuais moradores, quando executaram a ocupação; os curiosos cartazes manuscritos que marcam a paisagem do prédio; a líder Maria do Planalto e parte da própria equipe que produz o material jornalístico (por Mariana Kz e Breno Castro Alves);
> O texto Noite em família”, em que Breno Castro Alves recorre a diálogos típicos de teatro para descrever, com precisão e sem retórica, o quotidiano em um apartamento ocupado.
> Os poemas políticos (1 2 3) em que Priscila Dilá descreve a ocupação como “alcance de possibilidades coletivas”, “respiro de ação direta” contra a insensibilidade do poder.
> As entrevistas em vídeo de Cauê Ameni com Maria do Planalto. Numa, ela aponta, do topo do edifício ocupado, outros prédios sem uso no Centro. Noutra, explica, calejada, como a PM procede, no caso de desocupação.
> Os áudios em participantes da ocupação relatam a Leandro Melito como iluminaram o prédio, fizeram a grossa faxina inicial (1 2), mantêm a limpeza quotidiana (1 2) e se relacionam com a vizinhança. Eles também narram sua trajetória, desde que expulsos do Jardim Alto Alegre e expõem os objetivos da ocupação atual.
Novas reportagens, em diversos formatos, irão ao ar nos próximos dias. A peça transmidiática que surgirá a partir de todo o material inspira-se em produções como a do Coletivo Garapa, sobre a Cracolândia; ou “A Folha Sagrada”, em que El País, de Cali (Colômbia) expõe e debate o cultivo e uso tradicional da folha de coca, nos Andes.
O seminário animado por Outras Palavras prosseguirá em 2011, com novas características. Permitirá participação presencial e via internet.
FONTE: Antonio Martins in http://www.ocupacao.outraspalavras.net.
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