Por puro acaso me deparei com este texto. Apesar de datado, não deixou de ser atual. E mais, me permitiu imaginar algumas cenas do cotidiano no período PT em Porto Alegre (será que volta?), já que não tive oportunidade de viver aqui naquele tempo. O texto, bem espirituoso, ajuda a ver que azul e vermelho em Porto Alegre são os signos da dualidade, seja política ou futebolística.
Outra razão para dar um pulo no site é que na (não)revista de onde saiu o texto tem mais, e fazem valer a garimpagem. Tem Giba Assis Brasil, Jorge Furtado, Carlos Gerbase e outros tantos. Aí vai um exemplo.
"NAO-TIL" Tecnologia & Contracultura.
http://www.nao-til.com.br/
"Você, e somente você, é dono de sua vida", lê-se no panfleto entregue por Anthony Ling, 14 anos. Mas não se trata de um manifesto anarquista, como o leitor apressado poderia pensar. Ling está ajudando seu pai, Winston Ling, presidente da Petropar, simpatizante das idéias liberais e um dos fundadores do Instituto de Estudos Empresariais ("http://www.iee.com.br"), a espalhar o pensamento de Hayek, Adam Smith e Lorde Stuart Mill aos que aproveitam o domingo de sol em dezembro de 2001 para passear no Parque Moinhos de Vento, localizado no bairro homônimo, o mais nobre de Porto Alegre. A mesma Porto Alegre que colocou o Partido dos Trabalhadores na prefeitura quatro vezes seguidas e cuja densidade de esquerdistas foi fundamental na eleição de Olívio Dutra para o governo do estado. A Porto Alegre do Orçamento Participativo, do Fórum Social Mundial, presencia uma homenagem ao capitalismo neste dia 2 de dezembro. Em outras 108 cidades do mundo, simpatizantes vestidos com camiseta azul irão caminhar, para demonstrar seu apoio ao capitalismo. Demonstração organizada pela fundação australiana "http://www.walkforcapitalism.com"
Anthony explica: "Tem muita gente aqui que apóia mais o PT, o outro lado. As pessoas utilizam as vantagens do capitalismo, mas são contra". Se Anthony já leu Smith ou Hayek? "Não, ainda não. Mas meu tio envia uns 3 e-mails por dia falando sobre esses caras mais importantes, eu tento ler." Reunindo-se ao pé de um pinheiro de natal construído por uma grande rede de supermercados, no meio do parque Moinhos de Vento, os senhores e senhoras de camiseta azul pouco chamam atenção. Os jornalistas têm dificuldade para encontrar os participantes. Uma senhora brandindo a bandeira nacional chama atenção. Não é a líder do movimento. Ângela Brandão Seger é arquiteta e moradora do Bela Vista, outro bairro nobre de Porto Alegre. E é representante da Associação da Classe Média em Defesa dos Interesses do Rio Grande do Sul (Aclame). Está lá para homenagear o capitalismo, porque o sistema exalta a liberdade e a prosperidade econômica. "Ao mesmo tempo, esta é uma chance de rever alguns aspectos errados do capitalismo, buscar mais inclusão", afirma. Alguém perto sopra ao ouvido do jornalista: "somos anti-comunismo, anti-socialismo, pela democracia".
Escurece, e a marcha não começa. Jornalistas, boa parte do quórum até agora - cerca de cem pessoas -, preocupam-se com a hora do fechamento. Uma premiação será feita a um destacado empresário antes da caminhada. "Ninguém fotografa!", brada alguém da imprensa, indignado com o atraso. Outra repórter comenta algo sobre como "eles não precisam ir para a redação, vão sair daqui e tomar um uísque". Os participantes da marcha formam um círculo para a premiação e agora, sim, alguns curiosos a mais engrossam o convescote. João Carlos da Rosa, 43 anos, ex-pedreiro e atual zelador, observa o ajuntamento, segurando uma cadeira de praia e garrafa térmica. O que o senhor acha do capitalismo? "Eu acho o que os outros acham", teoriza João Carlos, sorrindo. Vira-se para a mulher e pergunta, não baixo o suficiente, "Capitalismo, você sabe o que é?". Informado de que os manifestantes temem a transformação do estado em um enclave socialista, João Carlos demonstra preocupação: "aí, fica brabo o negócio".
A marcha começa. Fotógrafos correm na frente. Justo em tempo de evitar as pedras, lançadas por um grupo de estudantes. Meia dúzia de estudantes. Um deles, com boné do MST. "Ladrões! Assassinos!", berram. Dizem-se anarquistas. Acreditam que eles, e somente eles, são os donos de suas vidas. Nenhum empresário. Os caminhantes respondem com "Vai trabalhar!" ou "Truta! Truta!", em referência às acusações de envolvimento com o jogo do bicho de que Olívio Dutra, governador do estado, é alvo. A imprensa se exalta. Os estudantes se misturam aos capitalistas, discutem. As câmeras registram. Uma faixa vermelha com críticas à economia de mercado é desfraldada. Os estudantes vão à frente, encobrindo os capitalistas. Estes resolvem deter a marcha. Desviam-se. Os estudantes correm e tomam a frente de novo. Rosana Moreira, transeunte, não entende. "O que é isso?". Ao lhe ser explicado, apóia os de azul. "Se eu trabalho, quero o melhor para mim, o capitalismo dá oportunidades." Não acha que a!livre iniciativa corra riscos abaixo do rio Mampituba, para precisar de uma caminhada em seu apoio. "Este é um estado muito empresarial para estar a perigo. E o povo daqui é inteligente."
Corredores e adeptos do footing desviam do grupo compacto e azul. Este desvia vezes e vezes dos estudantes. A primeira estrofe do hino nacional, e somente a primeira, é cantada em resposta aos ataques dos estudantes.
- Igualdade! Igualdade!, gritam os de vermelho. - Liberdade! Liberdade!, os de azul.
Após uma volta no parque Moinhos de Vento, a caminhada chega novamente ao pé do segundo maior cone de natal do mundo - sim, porque de árvore há muito pouco na estrutura de 60 metros. Uns meninos de rua cercam os estudantes e suas palavras de ordem. Pedem dinheiro.
- Olha aqui, ó, o resultado do capitalismo! Isto é o capitalismo!, aponta um dos estudantes. - É tu! - retruca o menino loiro, descalço e molambo. Os de azul e vermelho trocam ofensas. O menino não ouve o tilintar de nem uma moedinha.
A curiosidade de meninas em tênis e argolas de ouro, rapazes de torso nu e cão na coleira é grande. Perguntam de que se trata. Outros preferem tomar um chimarrão, acelerar o motor de seu carro em frente a um grupo de mocinhas. "Cu-e-cão de cou-ro!", berra uma buzina. Os de azul decidem dispersar, já que a imprensa dá grande atenção aos estudantes de vermelho. Alguns azuizinhos tentam incutir bom senso aos estudantes perdidos em meio à propaganda comunista. Não conseguem.
- Depois, vocês vão vir nos pedir emprego! - Fecha essa boca gorda!, responde o rapaz que diz se educar em um curso secundário. Fotos e mais fotos.
Os ânimos se acalmam, a manifestação se dissipa. Alguns dão declarações à imprensa. Winston Ling, capitalista, conversa com Billy, anti-capitalista. Promete lhe enviar alguns livros de liberais radicais.
- Você consegue ler coisas complicadas, não?
Billy desconversa, mas se mostra aberto ao desafio. Ao lado, Luiz Carlos Soares, microempresário, e Alexandre Madeiras, estudante de Ciências Sociais na UFRGS, discutem a aplicabilidade do ideário liberal e do socialista, em um alto nível inédito até agora. "A palavra direita, em alguns países, significa apenas quem está no poder...", "... Temos de romper com a visão clássica do capitalismo laissez-faire...", "Nada mais social do que uma empresa SA. O PT é o partido mais neoliberal...". Os azuis se dirigem a um bar na "calçada da fama", rua com estabelecimentos freqüentados pela nata porto-alegrense. Um show começa embaixo do cone de natal. Beto, somente Beto, vendedor de água e refrigerante, empacota sua mercadoria. Não sabe qual o motivo de tanta bagunça. Só sabe que vendeu pouco. As causas do bochincho lhe são informadas. Quem ele apóia?
- Olha, moço, sem sacanagem: é tanta esculhambação, que eu nem sei mais quem é quem.
No dia do capitalismo, 2 de dezembro, sobrou Coca-Cola na barraca de seu Beto.
"o olho só vê o que a mente está preparada para compreender"[henri bergson]
Marcelo Träsel
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