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terça-feira, 13 de março de 2012

Os vendilhões do templo do futebol

Por Antonio Jorge Melo
Publicado em Brasil 247

Foto: Adelar Anderle (*)


Nem o mais liberal dos liberais, presumo, pensaria que, um dia, o Estado entregaria a função de promover a imposição coercitiva das regras de regulação de comportamentos sociais nas mãos da iniciativa privada, nem que séculos depois a sociedade humana globalizada se encontraria diante de um cenário parecido com o que vivenciou à época da consolidação ou criação das polícias modernas, mas em sentido inverso.



Não é preciso ser um cientista social para se perceber que as transformações sofridas pelo processo de produção do bem segurança ocorridas no mundo ocidental, ao longo dos últimos 30 anos, colocam em xeque não só a teoria weberiana do monopólio estatal da violência legítima, mas a própria ideia de uma separação entre os setores privado e público.


De certa forma, a presença desses agentes de segurança privada entre nós não é um fenômeno novo, mas o que é novo, nesse cenário globalizado, é que na esteira das regras gerais da Fifa sobre segurança nos estádios de futebol está a se desenhar um novo modelo de expansão da segurança privada no Brasil.


Queira ou não o nosso cioso e "ingênuo" ministro dos Esportes, a exemplo do que já ocorreu com a chamada Lei Geral da Copa, o modelo desenhado pela regulamentação da Fifa nos obrigará a um alinhamento da legislação pátria, em razão da Copa 2014. Todavia, temo que o projeto de lei que está tramitando na Câmara dos Deputados, criando o novo Estatuto da Segurança Privada, possa representar uma radicalização na mercantilização de serviços de segurança em nosso país.


Elaborado sob medida para a realização dos Jogos Olímpicos e para a Copa, o texto do referido projeto, entre outras medidas, atribui ao organizador de eventos a responsabilidade pela segurança interna nos estádios e praças de show, mas não imuniza o Estado e, consequentemente, o contribuinte de assumir corresponsabilidades, sem a devida contraprestação financeira, e a responder por eventos deficitários que serão levados a efeito sem o glamour e a lucratividade dos grandes clássicos futebolísticos, dos eventos carnavalescos e das megaproduções artísticas.


Não tenho dúvidas de que a privatização da segurança é algo irreversível e que a sua aplicação em alguns serviços pode e deve ajudar a polícia pública a poupar seus esforços em eventos como jogos de futebol que, em tese, são privados e visam lucro, mesmo que ocorram em estádios pertencentes a entes públicos.


Se o modelo de segurança integrada preconizado pela Fifa e a oferta de serviços particulares de segurança podem não representar um problema para países que têm um forte controle no funcionamento e fiscalização das empresas que atuam em seu território como um complemento às atividades da polícia, o mesmo não se pode dizer de estados onde, historicamente, perdeu-se a legitimidade para definir os limites entre o público e o privado, pois o mercado passa a constituir o mecanismo privilegiado de distribuição do bem segurança.
Em sociedades extremamente desiguais e hierárquicas, onde o Estado não consegue garantir um serviço de segurança pública gratuito e igual a todos os seus cidadãos, não raro, a exemplo do que ocorre com a saúde e a educação, os serviços privados de segurança funcionam como uma opção para os que podem pagar pela qualidade e, muitas vezes, escapando ao controle do Estado, atuam de modo paralelo ou, até mesmo, em oposição à própria polícia.


A legitimidade de um governo está intrinsecamente relacionada à sua capacidade em manter a ordem, por intermédio do policiamento público e do tipo de controle que seus cidadãos possam ter sobre a maneira como esse poder-dever é exercido. Nesse sentido, cabe perquirir-se, diante da insuficiência ou inexistência das nossas estruturas de accountability sobre a ação das polícias públicas, a respeito das garantias que teremos sobre os limites das ações dessas polícias privadas armadas em espaços públicos e espaços intermediários, semipúblicos ou semiprivados.


Contra o risco é preciso se proteger, daí que, mais do que nunca, urge um aprofundamento das discussões sobre a questão da atuação da segurança privada em espaços públicos, pois o mercado tem uma inteligência que segue uma lógica própria e, em que pese a falácia da responsabilidade social, não visa o bem comum, posto que voltada apenas para quem paga, quem mantém o negócio.


Para sediar uma Copa do Mundo, o Brasil precisa mostrar-se seguro, e a construção de um "ambiente seguro" para o evento, o que significa adequar-se às "forças do mercado", atualmente globais e, portanto, extraterritoriais que, verdadeiramente, exercerão a governança da grande festa do futebol mundial, cabendo apenas ao Estado dar-se por satisfeito em garantir-lhe a infraestrutura, os meios e os serviços indispensáveis à realização dos jogos e assistir, de camarote, como convidado de honra, os donos do capital mandarem e desmandarem nos gramados.


Não se trata de expulsar os vendilhões de segurança dos templos do consumo, mas de evitar que sejamos todos tomados pela cegueira branca de que nos falava José Saramago, trilhando o perigoso caminho do silêncio ao permitir que, cada vez mais, os modernos vendilhões de segurança se acomodem, definitivamente, em nossas casas, nas praças, ruas e avenidas, controlando as nossas vidas, em detrimento dos valores republicanos de justiça, equidade e imputabilidade. Mas essa é uma questão que não está presente nas discussões acerca do Novo Estatuto da Segurança Privada.


(*) Delegado de Polícia Federal e integrou a comissão que discutiu o Estatuto do Torcedor.

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