A discussão da Função Social da Propriedade veio novamente à tona após os moradores da Ocupação Saraí e o governo do Rio Grande do Sul tentarem dialogar com o proprietário do prédio localizado no Centro de Porto Alegre, e ocioso há dez anos, para entrar em um acordo sobre sua utilização. Em uma audiência solicitada pelo secretário estadual de Habitação, Marcel Frison, e mediada pela juíza Cláudia Maria Hardt, o proprietário do imóvel, Ricardo Deconto, da Risa Administração e Participações LTDA, não aceitou a proposta de venda do prédio e pediu novo processo de reintegração de posse, com prazo de 60 dias.
Na audiência realizada no fim de abril, o secretário apresentou a proposta de compra do prédio visando atender as famílias ocupantes. O proprietário não aceitou, alegando que faria uso do seu prédio, na rua Caldas Júnior, em Porto Alegre. Diante desse quadro, foi pedido a imediata Reintegração de Posse. O advogado Cristiano Muller, do Centro de Direitos Econômicos e Sociais (CDES), integrante da assessoria jurídica da Ocupação Saraí composta ainda pelo SAJU/UFRGS e pela Acesso Cidadania e Direitos Humanos, interviu alegando questões do processo legal da ação e conseguiu o prazo de 60 dias.
A possibilidade de reintegração de posse levanta novamente a discussão sobre o direito de moradia dessas famílias, pois caso ocorra a reintegração, haverá o despejo das moradores ocupantes. No entanto, para arquiteta e urbanista do CDES, Karla Moroso, esse debate não se trata apenas de prover moradia para as 30 famílias que ocuparam o imóvel. “Trata-se de reverter uma lógica. Uma lógica que vigora até hoje e vem mantendo intacta a propriedade privada”.
Cred. Defesa Pública da Saraí |
A arquiteta e urbanista defende que essas garantias se materializem na vida das pessoas e na cidade. Ou seja, que a Função Social da Propriedade aconteça e que o direito à moradia de milhões de famílias seja maior que o direito à propriedade. “E aqui estamos falando de um direito individual que sequer foi exercido pelo dito ‘proprietário’ do prédio da Caldas Júnior, visto que ele está abandonado há 10 anos. Romper com essa realidade é reforma urbana”, afirma.
Karla Moroso salienta que o Estatuto da Cidade trouxe diversos instrumentos urbanísticos e de gestão para fazer cumprir a Função Social da Propriedade, articulando-a com outros dois princípios fundamentais para o desenvolvimento urbano: a gestão democrática e a justa distribuição dos ônus e benefícios do processo de urbanização. A profissional analisa que, nessa lógica, o prédio da Caldas Júnior não cumpre com a função social, pois está vazio e abandonado em uma área central urbanizada e numa cidade com considerável déficit habitacional. “Sua destinação também escapa de um processo democrático, visto que sua destinação está sendo decidida considerando apenas um viés legalista descontextualizado da questão do desenvolvimento urbano”, pondera Karla.
Outro ponto levantado por Karla é a especulação imobiliária. O imóvel passou de R$ 700 mil – valor que foi pago pela CAIXA há dez anos – para R$ 4,5 milhões, segundo o advogado do proprietário, sem que tenha havido investimentos por parte do mesmo. “Com certeza a localização do imóvel, com toda a infraestrutura disponível e as possibilidades de investimentos públicos previstas para a região, são fatores bastante determinantes para essa valorização e consequente capitalização por parte de um proprietário. Ou seja, enquanto a sua ‘não posse’ gerou nos últimos anos a degradação do prédio, ações externas, de ordem direta e especulativa provocaram a sua supervalorização”, salienta Karla.
O parcelamento, edificação e utilização compulsórios, o IPTU progressivo no tempo e a desapropriação com títulos da dívida pública são instrumentos que, se regulamentados, seriam uma grande ferramenta para frear a periferização das cidades e promover habitações de interesse social em áreas mais centrais e infraestruturadas, de acordo com a arquiteta e urbanista. Esses instrumentos, na visão da profissional, devem ser utilizados de forma conjunta pelos municípios com o objetivo de induzir a utilização da terra urbanizada.
“Para isso, é preciso que esses instrumentos estejam presentes no Plano Diretor de forma combinada com uma regulamentação que indique em quais zonas da cidade os imóveis vazios e subutilizados devem ser gravados para a aplicação da Lei. É importante definir o que é um imóvel vazio, quando é que ele não cumpre com uma função social e quando ele está subutilizado, caso contrário o instrumento não tem aplicabilidade, é apenas um texto de lei. O município de Porto Alegre não regulamentou esses instrumentos e por isso, hoje, para salvar as famílias do despejo só resta a desapropriação”, reforça.
Cred. Defesa Pública Saraí |
Karla Moroso salienta que os financiamentos disponibilizados pelo Governo Federal para estados, municípios e também para as entidades (movimentos sociais organizados ou entidades que os apoiam) estão pensados nessa lógica. “Em Porto Alegre, na avenida Borges de Medeiros temos um exemplo desse tipo de solução, promovido e viabilizado pelos movimentos sociais e suas assessorias. Na rua Barros Cassal, em Porto Alegre, o Movimento de Luta pela Moradia está trabalhando para transformar em moradia um prédio da pertencia à União que foi destinada para habitação de interesse social. Contudo, não basta que tenhamos normas e financiamentos. O que estamos vivendo nas nossas cidades mostra que, mesmo com grandes avanços, normas e financiamentos estão sendo insuficientes para garantir a reforma urbana. Precisamos de mais, precisamos avançar, pois ainda temos muita gente sem casa e muita casa sem gente. É preciso tirar a chamada Reforma Urbana do papel e fazer ela acontecer na cidade, com reflexos na vida das pessoas”, conclui.
A Ocupação
As 30 famílias que vivem no imóvel localizado na esquina da rua Caldas Júnior com a avenida Mauá, no Centro de Porto Alegre, ocupam o prédio há oito meses. É a ocupação mais longa da edificação, desde que foi utilizada como moradia popular pela primeira vez, em 2005. O imóvel, que funcionou como escritório da Caixa Econômica Federal, foi adquirido pela família Deconto, que comanda a Risa Administração LTDA, nos anos 2000, e ficou abandonado desde então. O prédio já foi ocupado outras três vezes, sendo a mais longa delas por quatro meses, entre 2006 e 2007.
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