Fonte: Jornal Tabaré
A obra de Montaury criou um veio onde a água mal circulava, tornando-se um fétido berçário de mosquitos que os porto-alegrenses denominaram “braço morto do Riacho”. Seu leito formava uma área cercada de água onde se formou uma vila, que se expandiu e deu nome a um conjunto de comunidades carentes chamado popularmente de Ilhota. Para a Prefeitura, aquilo eram 22 hectares de problemas: além de ser considerado um antro de criminosos, todo ano caminhões precisavam ficar de plantão para recolher os flagelados das cheias. Foi assim até 1979, quando as escavadeiras municipais retiraram do mapa o pobre enclave que existia próximo ao Centro da cidade.
Da lama ao caos
Pelotense, a professora estadual Ilka Torres veio morar aqui em 1959 e lembra bem disso: “Tinha uma fama meio pesada, a gente tinha até restrições de ir lá por perto. Diziam que a polícia tinha receio de entrar na Ilhota”. Moradora do Bom Fim, bairro próximo dessa comunidade pobre, ela conta que “havia um certo preconceito”: “Acho que de serem negros, pobres e bêbados. Faxineiras ou empregadas não se queria que fosse da Ilhota, agora, por quê, não sei. Eu nunca tive [empregados] da Ilhota”, revela.
Os jornais da época são unânimes ao descrever o local como abrigo de marginais e o sociólogo do Demhab considera que boa parte dos moradores “eram pequenos criminosos”. Segundo ele, batedores de carteira, golpistas e assaltantes em geral. O funcionário público aposentado e ex-morador da Ilhota Jairo Rodrigues esclarece: “Alguns a gente sabia que eram marginais, mas não tenho notícias de alguém ser assaltado na vila. Nem de tráfico. Alguém conhecia alguém que fumava maconha, e que ia lá no cais pegar dos marinheiros que vinham de fora… Bebida sim, tinha os botecos… E, de vez em quando, um cara dava uma facada no outro. A beberragem, né? E claro, mulher, né? Ciúme. Uma vez, vi uma briga que o cara tocou uma faca e matou o outro. Mas foi poucas vezes”.
Na verdade, a violência era o último dos problemas dos moradores da Ilhota. Jairo viveu lá de 1947 a 1962 e hoje, aos 69 anos, o que mais se destaca em sua memória é a extrema precariedade do local: “A lembrança que eu tenho é muito, muito ruim. No verão secava um pouco, mas no inverno era lodo. Tu tinha que ser equilibrista e pisar numas tabuinhas para não atolar o pé. Eu tinha até vergonha, trabalhava numa loja na Praça Garibaldi e chegava lá todo embarrado, tinha que limpar os sapatos… Vou dizer, pra quem morou na Ilhota, não tem vila ruim”.
Jairo afirma que a Prefeitura nem se aproximava do local. “Não tinha órgão público que chegasse. A água era de bica, botavam uma torneira e tu ia de balde. Luz, só gateada. Nem gateada, era pior! Na 17 de Junho, uns camaradas vendiam luz pro pessoal da vila. Era ‘paliteiro’: puxavam um fio de 150 metros, todo emendadinho, e cobravam uma taxa por mês pela luz. Um biquinho né? Frigidaire, essas coisas, nem pensar”.
Esgoto? “Casinha. Patente, um buraco. Malcheiroso, com mosquito, o que tu possa imaginar. Era tudo de madeira, as casas uma do lado da outra, e cada um fazia seu banheiro. Tinha que tomar banho de bacia, era o que todos faziam. Saneamento básico não existia”, conta Jairo. “Pra tu ver como era insalubre, na minha família, dos quatro irmãos, três contraíram tuberculose. Era comum. Morriam muitas crianças. Febre, vermes, doenças infantis… Era muito ruim, uma página negra na história de Porto Alegre”.
Pra baixo do tapete
Aldovan Moraes sugere que os habitantes iniciais da Ilhota eram proprietários que adquiriram terrenos ali no início do século XX. Ele acredita que os primeiros invasores tenham chegado a partir de 1910, eram “os pobres do próprio município”. Mas segundo o sociólogo do Demhab, até 1945 havia poucas vilas irregulares em Porto Alegre: “A Prefeitura só começa a se preocupar com isso na segunda metade dos anos 1940, não existe problema antes disso. Existe, mas não era considerado um problema. Numericamente falando, o percentual de invasões anterior a 1945 não é importante. Era um assunto irrelevante”.
Uma das primeiras vilas removidas da cidade foi a Vila Piratini, que ficava onde hoje está o Colégio Júlio de Castilhos. Em 1947, ela foi levada para uma zona ao lado da Ilhota criando a Vila DTO onde agora fica o Colégio Protásio Alves. Na prática, essa era mais uma vila chamada popularmente de Ilhota, assim como a Vila dos Eucaliptos e o Cantão. “O que dividia a DTO da Ilhota era a Rua Arlindo [mais ou menos por onde abriram a Erico Verissimo]. Mas é meio misturado, né?”, ressalta Jairo Rodrigues.
Dos anos 1940 aos 60, Porto Alegre sofreu o seu maior aumento populacional e na Ilhota não foi diferente. O funcionário público aposentado conta que, enquanto morou lá, “mudou só pra pior”: “Cresceu, apertou mais. Tinha lugares que o pessoal não ia e começou a ir, a ocupar os espaços. Lugares alagados mesmo, baixinhos. Cada um fazia o que dava, arrumava uma carroça, botava terra. Cada um por si e Deus por todos”.
A partir das enchentes de 1941, a Prefeitura começou a projetar o fim da Ilhota, e, conforme ela foi superlotando, começaram as remoções massivas. Em novembro de 1954, foram retiradas 704 malocas da Vila DTO, mas foi durante a ditadura que o processo se intensificou. Em 1967, o Demhab, com a gentil ajuda do Exército, retirou mais de mil casas da Ilhota e levou seus moradores para inaugurarem a recém criada Restinga.
Aldovan Moraes admite que “os antigos habitantes da Ilhota não foram beneficiados pelas obras que retiraram eles dali”. “O ponto de vista da vítima era desconhecido, os moradores não eram ouvidos. Houve sofrimento, houve horror inicial, a coisa piorou”, garante o sociólogo do Demhab. Apesar de não morar lá desde 1962, Jairo conta o que seus amigos passaram: “Vieram caminhões, desmancharam tudo na marra e jogaram o pessoal na Restinga. Tenho um conhecido que levaram tudo e ele nem foi buscar. Foi traumático”.
Pois se a Ilhota era ruim, a Restinga do fim dos anos 1960 era muito pior: “Nos primeiros anos, não tem rede de água, nem nada”, afirma Aldovan. Segundo ele, o plano era que “os habitantes de cada domicílio da Ilhota tivessem direito a um lote na Restinga”. Porém, “a partir dos anos 1970 já não há mais lotes suficientes e se começa a pôr mais de uma casa no mesmo”, revela.
Apenas por estarem próximos ao Centro, os habitantes da Ilhota tinham acesso a serviços públicos mínimos, como o Centro de Saúde Modelo e o colégio Emílio Massot, além de poderem trabalhar formal ou informalmente. Na Restinga, isso acabou. Aldovan Moraes conta que lá eles ficaram “simplesmente atirados, todos na mesma situação, sem nada” e a fome virou rotina: “Toda atividade econômica da Ilhota é impossível nesse novo local. Eles não têm para quem mendigar, quem roubar, ou como ir a pé pros locais de emprego. [Na Restinga] tudo que existia eram os coitados dos pequenos proprietários de chácaras que tinham que se precaver pra evitar que suas lavouras fossem roubadas”.
Enquanto a Restinga ia sendo ocupada por egressos de várias vilas que foram removidas na época, alguns ainda permaneciam na Ilhota. A situação se arrastou até 1972, quando o Banco Nacional de Habitação lançou o plano Comunidade Urbana de Recuperação Acelerada. Com isso, Porto Alegre recebeu mais de Cr$ 360 milhões para realizar uma imensa reforma urbanística chamada Projeto Renascença. Além da remoção total da Ilhota, esse projeto previu a criação da Primeira Perimetral, o aterro de parte do Guaíba criando o Parque Marinha do Brasil e a e Avenida Beira Rio, dentre várias outras supostas melhorias. Aldovan afirma que até houve “o projeto de apartamentos para egressos da Ilhota na mesma região onde ela seria extinta”, mas essa foi “uma das tantas coisas que nunca saíram do papel”.
O Projeto Renascença foi concluído em 1979 acabando de vez com os últimos suspiros da Ilhota. Como mais um tumor social, ela foi removida cirurgicamente por máquinas pesadas que a transplantaram para longe dos olhos da cidade. Da sua existência, não restou praticamente nenhum resquício, apenas o traçado irregular de algumas ruas indicando por onde passava o velho Riachinho.
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