Publicado em Carta Maior, 09/09/2012
As cidades estadunidenses estão sendo forçadas a fazer o que fez Nova Iorque para evitar a bancarrota em 1974: entregar a gestão para quem Wall Street bem entender. Como na Grécia e na Itália, políticos eleitos serão substituidos por “tecnocratas” para fazer o que Thatcher e Tony Blair fizeram com a Inglaterra: vender o que resta do setor público e transformar cada programa social numa mesa de negociações. A ideia é forçá-las a equilibrar o orçamento arrendando ou vendendo suas avenidas, sistemas de transporte público, escolas e prisões. O artigo é de Michael Hudson.
Michael Hudson (*)
A marcha de Wall Street contra os 99% está se acelerando. É a mesma filosofia de austeridade imposta à Grécia e à Espanha, e a mesma que leva o presidente Obama e Mitt Romney a insistirem na redução de custos com o Medicare (assistência de saúde pública) e com a Previdência Social.
Diferentemente do governo federal estadunidense, a maioria das cidades e estados têm constituições que previnem déficits orçamentários. Isso significa que ao suprimirem impostos sobre imóveis, as cidades e estados devem pegar dinheiro emprestado dos ricos ou cortar serviços públicos.
Por muitos anos eles, as cidades e estados, pegaram dinheiro emprestado, pagando juros isentos de impostos aos detentores de títulos, os credores públicos. Isso parece arriscado agora que a economia afunda com a queda dos valores das dívidas. Cidades estão se tornando inadimplentes da California ao Alabama. Elas não conseguem reestabelecer impostos sobre proprietários sem causar mais inadimplência hipotecária e abandonos. Alguém tem que ceder – então as cidades reduzem gastos públicos, encolhem seus sistemas educacionais e forças policiais, e vendem seus ativos para pagar detentores de títulos.
Isso tem se tornado a principal causa do crescente desemprego nos Estados Unidos, que obviamente diminui a demanda de consumo. É um pesadelo keynesiano. Menos óbvios são os cortes devastadores ocorrendo na saúde, no treinamento de mão-de-obra e outros serviços, enquanto taxas de matrícula para colégios públicos e as “taxas de participação” no ensino médio sobem. Sistemas escolares estão se desfazendo e professores são abandonados numa escala nunca vista desde a Grande Depressão.
Todavia, estrategistas de Wall Street enxergam essa situação e o orçamento local espremido como dádivas. Como disse Rahm Emanuel, uma crise é uma oportunidade boa demais para se desperdiçar – e a crise fiscal alavanca os credores financeiramente para empurrarem políticas anti-trabalhistas e privatizações.
O terreno está sendo preparado para uma “cura” neoliberal: cortar pensões e assistência médica, negligenciar promessas de reformas trabalhistas, e vender o setor público, deixando os novos proprietários cobrarem pedágios sobre tudo, desde avenidas a escolas. O termo do momento é “extração de rendas”.
Tendo causado a crise financeira, o legado de décadas de cortes sobre a propriedade financiado pelo afundamento em dívidas agora deve ser pago por arrendar ou vender ativos públicos. Chicago arrendou sua Skyway por 99 anos e seus estacionamentos por 75 anos. O prefeito Emanuel contratou os gerentes de ativos do JP Morgan para dar “conselhos” sobre como vender a privatizadores o direito de cobrar taxas sobre serviços que eram gratuitos. É o equivalente moderno dos cercamentos ingleses dos séculos XVI e XVIII.
Por retratar os servidores locais como inimigos públicos número 1, a crise urbana está fazendo com que a luta de classes volte à ordem do dia. O setor financeiro argumenta que pagar pensões (ou até um salário mínimo) absorve a receita que deveria ser usada para pagar detentores de títulos. A cidade de Scranton na Pensilvânia reduziu os salários do setor público para o mínimo “temporariamente”, enquanto outras cidades procuram romper com planos de pensão e contratos salariais – e depois vão atrás de jogos de azar em Wall Street, numa tentativa desesperada de cobrir suas obrigações recentemente estimadas em 3 trilhões de dólares, mais 1 trilhão em cuidados de saúde.
Embora Wall Street tenha engendrado a economia-bolha cuja explosão engatilhou a crise fiscal urbana, seus lobistas e suas teorias econômicas disparatadas não são responsabilizados. Melhor do que culpar os que cortaram impostos e deram uma herança inesperada aos banqueiros e aos magnatas do setor imobiliário, são os professores e outros empregados do serviço público que devolvem seus salários deferidos, que são, na verdade, suas aposentadorias. Para os predadores financeiros não existem devoluções desse tipo.
Em vez disso, é chegado o período em que as cidades serão forçadas a fazer o que fez Nova Iorque para evitar a bancarrota em 1974: entregar a gestão para quem Wall Street bem entender. Como na Grécia e na Itália, políticos eleitos serão substituidos por “tecnocratas” apontados para fazer o que Margaret Thatcher e Tony Blair fizeram com a Inglaterra: vender o que resta do setor público e transformar cada programa social numa mesa de negociações.
O plano é atingir três metas. Em primeiro lugar, dar aos privatizadores o direito de cobrar pedágio sobre a infraestrutura pública. A ideia é forçar cidades a equilibrar o orçamento arrendando ou vendendo suas avenidas e sistemas de transporte público, escolas e prisões. Isso promete criar um novo mercado para os bancos: empréstimos a abutres que comprarão os direitos de instalar pedágios na infraestrutura básica da economia.
Oficiais públicos eleitos não podem engajar-se em políticas tão predatórias e anti-trabalhistas. Só a “magia do mercado” pode dissolver sindicatos, diminuir serviços públicos e colocar pedágios nas estradas e nos sistemas de água e esgoto ao mesmo tempo em que cortam linhas de ônibus e aumentam tarifas.
Para realizar esse plano financeiro é necessário emoldurar o problema de tal maneira que alternativas menos anti-sociais sejam excluidas. Como bem sabia Margaret Thatcher, deve-se pregar a falta de alternativas. Não há alternativas senão vender o transporte público, o setor imobiliário e até sistemas educacionais e prisões.
Desmontar a educação pública e departamentos policiais para pagar os credores públicos
Políticas de impostos locais costumavam servir à educação. Os Estados Unidos eram divididos em redes fiscais que financiavam distritos escolares, juntamente com avenidas e linhas de ônibus e sistemas de água e esgoto. Municípios com melhores escolas taxavam mais as propriedades, isso tornava mais desejável viver em tais distritos e aumentava os preços dos imóveis, não os diminuia. A melhoria urbana era autossuficiente e fazia com que distritos com impostos diminutos fossem esquecidos.
Mas essa não é mais a maneira norte-americana de se fazer as coisas. A educação foi particularmente demonizada. O sistema escolar californiano é uma das baixas da Proposição 13, a lei de congelamento dos impostos sobre a propriedade, promulgada em 1978. A Associação de Donos de Apartamentos da Califórnia convocou seu homem de frente, Howard Jarvis, para ser o lobista que prometeria aos eleitores que quase nada mudaria se educação e bibliotecas sofressem uma redução. Ele afirmava que “de qualquer maneira, 63 por cento dos graduados são analfabetos”, então quem precisaria de livros? A educação e outras partes dos gastos públicos foram congelados enquanto impostos sobre imóveis eram reduzidos em 57% - de 2.5 ou 3% a tão somente 1% da valoração. O resultado é que o sistema escolar californiano foi parar em quadragésimo-sétimo no ranking nacional.
Para os neoliberais, a beleza disso tudo é que o rebaixamento da educação torna os cidadãos mais suscetíveis à falsa consciência do Tea Party. Por exemplo, quando a lei de congelamento dos impostos foi promulgada, investidores comerciais prometiam proprietários de imóveis que impostos mais abrangentes tornam a habitação mais acessível e que aluguéis cairiam. Mas eles subiram, juntamente com os preços do setor imobiliário. Essa é a grande mentira dos neoliberais redutores de impostos: eles prometem que os cortes diminuirão custos ao invés de dizer que eles proverão uma herança inesperada para proprietários – e também para bancos já que os crescentes preços do aluguel estão “livres” para serem capitalizados em empréstimos hipotecários maiores. Novos compradores precisam pagar mais, o que aumenta o custo da vida e dos empreendimentos.
De volta a 1978, às vésperas da Proposição 13 proprietários comerciais pagavam metade dos impostos do setor imobiliário e proprietários de imóveis a outra metade. Mas agora a metade dos proprietários de imóveis se tornou dois terços, enquanto a parte dos comerciantes caiu para um terço. Agentes de crédito de bancos têm capitalizado os cortes de impostos em hipotecas maiores, assim os preços da habitação cresceram. O prefeito de Los Angeles, Antonio Villaraigosa, declarou ano passado que “é hora de enfrentar a inequidade da Proposição 13, que permite às grandes corporações arrecadar um dinheiro que era para os proprietários de imóveis. Nós não estamos financiando o governo. Nós só estamos dizimando o governo e os serviços que ele presta”. Ele propôs um imposto sobre a propriedade que restaurava taxas mais elevadas para investidores.
A educação escolar é uma ocupação desgastante. Essa é uma das razões pelas quais professores têm um dos sindicatos mais fortes dos Estados Unidos. Os salários deles não subiram tão rápido quanto as despesas porque eles concordaram em ter menos renda no curto prazo, a fim de obter aposentadorias ao pararem de trabalhar. Esses contratos estão agora sob ataque – para pagar os credores públicos. Estados e cidades agora insistem que os detentores de títulos não podem ser pagos uma vez que se remunere adequadamente força de trabalho dos servidores públicos.
Agora estamos vendo que loucura é não cobrar impostos sobre a propriedade e substituir receitas fiscais com empréstimos, pagando juros isentos de impostos para os mais abonados detentores de títulos do país. O corte na base de impostos sobre a propriedade encontra, assim, seu irmão gêmeo na onda de incumprimentos das promessas de aposentadoria.
Os impostos do setor imobiliário cairam de dois terços das receitas urbanas na década de 1920 para um sexto. Os subsídios do governo federal também estão sendo cortados, e as concessões estatais para as cidades estão seguindo o exemplo. Mas ao invés de tornar a habitação mais acessível, os cortes de impostos “liberaram” o valor do aluguel do coletor de impostos só para que os bancos fossem pagos.
Nesse sentido a Califórnia também esteve na linha-de-frente. Em 1996 os eleitores aprovaram a Proposição 218, que requer que toda nova taxa, imposto ou avaliação de propriedade tenha de ser aprovada por dois terços do eleitorado (algumas exceções feitas para que os sistemas de água e esgoto se mantivessem viáveis). Esse estratagema “mata a fera de fome”, sendo que a “besta” é a infraestrutura pública e os serviços sociais. Forças policiais estão sendo diminuidos e programas sociais cortados. E conforme a pobreza urbana cresce, os índices de criminalidade estão subindo.
Assim, o fato econômico mais importante a ser reconhecido é que o imposto renunciado tende a ser capitalizado em empréstimos hipotecários. E por deixar mais aluguéis disponíveis a serem pagos como juros, cortar os impostos sobre a propriedade obriga seus compradores a se afundarem em dívidas. Impostos menores sobre a propriedade significam maiores preços para a habitação – a crédito, porque uma casa ou qualquer outro imóvel vale quanto o banco empresta a novos compradores. Então, por capitalizar o valor do aluguel num fluxo de juros, os banqueiros ficam com o aluguel – e, consequentemente, com os cortes fiscais sobre imóveis.
Esse é o significado de livre-mercado hoje: renda criada por investimentos no setor público “livre” para ser paga aos bancos como juros em vez de ser recuperada pelo governo.
A maior parte da receita urbana são rodovias, escolas e sistemas de água e esgoto financiados pelo contribuinte.
Mas nem os especuladores imobiliários nem os banqueiros acreditam que esse investimento do contribuinte deva ser reavido por taxar o aumento no valor dos locais criado pelos próprios serviços públicos. Em vez de tornar o setor público auto-financiado conforme os serviços públicos se expandem para criar riqueza, os proprietários privados ficarão com os benefícios – enquanto os bancos capitalizam ganhos em empréstimos hipotecários maiores, que hoje respondem por 80% do crédito bancário.
O miolo da “falsa consciência” dos banqueiros – a matéria de capa com a qual os lobistas do Tea Party estão procurando doutrinar os eleitores norte-americanos – é que os impostos sobre a terra e os ativos financeiros punem os “criadores de emprego”. Os beneficiários desse gasto público dizem que precisam ser mimados com preferências fiscais para investir e empregar, enquanto os 99% devem ser chutados e incitados a trabalhar mais por menores salários. Essa falsa narrativa ignora que os maiores períodos de crescimento norte-americano foram aqueles em que os impostos inviduais e corporativos eram também maiores. O mesmo é verdadeiro na maioria dos países. O que está sufocando o crescimento econômico são as elevadas dívidas – devidas a 1% da população – e cortes de impostos sobre grandes riquezas.
O arrocho nas aposentadorias públicas é parte da crise geral
Paul Ryan, candidato indicado a vice-presidente pelo Partido Republicano, e Rick Perry, governador do Texas, caracterizaram a Previdência Social norte-americana como um esquema a la Charles Ponzi [2]. Isso é verdadeiro no óbvio sentido que aposentados devem ser pagos com o dinheiro de novos contribuintes. É assim que qualquer sistema pay-as-you-go deve funcionar. Mas o problema não é que o sistema deve ser pré-financiado para fornecer ao governo receita para cortar impostos dos 1%. O problema é que novas contribuições vão se esgotando conforme a economia se esmigalha com a sobrecarga de dívidas.
A Previdência Social pode ser paga facilmente. O Fed imprimiu U$13 trilhões para dar aos banqueiros em 2007. Ele pode fazer o mesmo com a Previdência Social – e com os subsídios cedidos pelo governo federal. O Fed pode cumprir com suas obrigações da mesma forma que cumpriu com os 1% de Wall Street. O problema é que o Fed só está disposto a fazer o que bancos centrais foram fundados para fazer. O intuito é salvar os detentores de títulos e as ambiciosas contrapartes dos bancos, não os 99%.
O problema é que o sistema financeiro está podre. Isso transformou a atual luta de classes numa guerra financeira na qual o fator principal é moldar a forma como os eleitores enxergam o problema. O truque é fazê-los pensar que cortar impostos barateará o custo de vida e a habitação, quando o entendimento que deve ser propagado é o seguinte: cortar impostos só faz com que mais renda para empréstimos caia no colo dos banqueiros, o que afundará mais ainda a economia.
Políticos democratas ou republicanos não querem taxar mais as finanças, os seguros ou o setor imobiliário. A postura deles está alinhada com o que querem os financiadores de suas campanhas: deixar Wall Street mais rica.
É o velho problema das prioridades. As dívidas não podem ser pagas e não serão pagas. Então, a questão é quem deve ser priorizado, o 1% ou o 99%?
Insiste-se que a austeridade e a redução do Estado são inevitáveis, não uma escolha política que prefere os credores públicos e o 1% aos 99% ou uma retribuição do dinheiro gasto comprando políticos e fazendo eleitores acreditarem que cortar impostos sobre a propriedade e sobre os ricos ajudará a economia.
Se os Estados Unidos continuarem a permitir que o 1% legisle, a economia empobrecerá muito em pouco tempo. A era do crescimento yankee chegará ao fim.
Alguém tem que ceder. Ou seja, é hora de dar calote. Caso contrário, Wall Street nos transformará na Grécia. Esse é o plano financeiro, para ser claro. É a estratégia da atual guerra financeira contra a própria sociedade. Na Letônia, eu conversei com a liderança do banco central. Ele me explicou que os salários do setor público cairam 30 por cento e isso puxou os salários do setor privado para quase tão fundo quanto. Neoliberais chamam isso de “desvalorização interna” e prometem que isso fará das economias mais competitivas. A realidade é que a desvalorização desfaz o mercado interno e faz os trabalhadores abandoná-lo.
(*) Michael Hudson recentemente publicou The Bubble and Beyond, obra que coloca os setores financeiro e imobiliário na raiz da crise fiscal urbana. Ele é professor de Economia na Universidade do Missouri (Kansas City).
Tradução: André Cristi
Diferentemente do governo federal estadunidense, a maioria das cidades e estados têm constituições que previnem déficits orçamentários. Isso significa que ao suprimirem impostos sobre imóveis, as cidades e estados devem pegar dinheiro emprestado dos ricos ou cortar serviços públicos.
Por muitos anos eles, as cidades e estados, pegaram dinheiro emprestado, pagando juros isentos de impostos aos detentores de títulos, os credores públicos. Isso parece arriscado agora que a economia afunda com a queda dos valores das dívidas. Cidades estão se tornando inadimplentes da California ao Alabama. Elas não conseguem reestabelecer impostos sobre proprietários sem causar mais inadimplência hipotecária e abandonos. Alguém tem que ceder – então as cidades reduzem gastos públicos, encolhem seus sistemas educacionais e forças policiais, e vendem seus ativos para pagar detentores de títulos.
Isso tem se tornado a principal causa do crescente desemprego nos Estados Unidos, que obviamente diminui a demanda de consumo. É um pesadelo keynesiano. Menos óbvios são os cortes devastadores ocorrendo na saúde, no treinamento de mão-de-obra e outros serviços, enquanto taxas de matrícula para colégios públicos e as “taxas de participação” no ensino médio sobem. Sistemas escolares estão se desfazendo e professores são abandonados numa escala nunca vista desde a Grande Depressão.
Todavia, estrategistas de Wall Street enxergam essa situação e o orçamento local espremido como dádivas. Como disse Rahm Emanuel, uma crise é uma oportunidade boa demais para se desperdiçar – e a crise fiscal alavanca os credores financeiramente para empurrarem políticas anti-trabalhistas e privatizações.
O terreno está sendo preparado para uma “cura” neoliberal: cortar pensões e assistência médica, negligenciar promessas de reformas trabalhistas, e vender o setor público, deixando os novos proprietários cobrarem pedágios sobre tudo, desde avenidas a escolas. O termo do momento é “extração de rendas”.
Tendo causado a crise financeira, o legado de décadas de cortes sobre a propriedade financiado pelo afundamento em dívidas agora deve ser pago por arrendar ou vender ativos públicos. Chicago arrendou sua Skyway por 99 anos e seus estacionamentos por 75 anos. O prefeito Emanuel contratou os gerentes de ativos do JP Morgan para dar “conselhos” sobre como vender a privatizadores o direito de cobrar taxas sobre serviços que eram gratuitos. É o equivalente moderno dos cercamentos ingleses dos séculos XVI e XVIII.
Por retratar os servidores locais como inimigos públicos número 1, a crise urbana está fazendo com que a luta de classes volte à ordem do dia. O setor financeiro argumenta que pagar pensões (ou até um salário mínimo) absorve a receita que deveria ser usada para pagar detentores de títulos. A cidade de Scranton na Pensilvânia reduziu os salários do setor público para o mínimo “temporariamente”, enquanto outras cidades procuram romper com planos de pensão e contratos salariais – e depois vão atrás de jogos de azar em Wall Street, numa tentativa desesperada de cobrir suas obrigações recentemente estimadas em 3 trilhões de dólares, mais 1 trilhão em cuidados de saúde.
Embora Wall Street tenha engendrado a economia-bolha cuja explosão engatilhou a crise fiscal urbana, seus lobistas e suas teorias econômicas disparatadas não são responsabilizados. Melhor do que culpar os que cortaram impostos e deram uma herança inesperada aos banqueiros e aos magnatas do setor imobiliário, são os professores e outros empregados do serviço público que devolvem seus salários deferidos, que são, na verdade, suas aposentadorias. Para os predadores financeiros não existem devoluções desse tipo.
Em vez disso, é chegado o período em que as cidades serão forçadas a fazer o que fez Nova Iorque para evitar a bancarrota em 1974: entregar a gestão para quem Wall Street bem entender. Como na Grécia e na Itália, políticos eleitos serão substituidos por “tecnocratas” apontados para fazer o que Margaret Thatcher e Tony Blair fizeram com a Inglaterra: vender o que resta do setor público e transformar cada programa social numa mesa de negociações.
O plano é atingir três metas. Em primeiro lugar, dar aos privatizadores o direito de cobrar pedágio sobre a infraestrutura pública. A ideia é forçar cidades a equilibrar o orçamento arrendando ou vendendo suas avenidas e sistemas de transporte público, escolas e prisões. Isso promete criar um novo mercado para os bancos: empréstimos a abutres que comprarão os direitos de instalar pedágios na infraestrutura básica da economia.
Oficiais públicos eleitos não podem engajar-se em políticas tão predatórias e anti-trabalhistas. Só a “magia do mercado” pode dissolver sindicatos, diminuir serviços públicos e colocar pedágios nas estradas e nos sistemas de água e esgoto ao mesmo tempo em que cortam linhas de ônibus e aumentam tarifas.
Para realizar esse plano financeiro é necessário emoldurar o problema de tal maneira que alternativas menos anti-sociais sejam excluidas. Como bem sabia Margaret Thatcher, deve-se pregar a falta de alternativas. Não há alternativas senão vender o transporte público, o setor imobiliário e até sistemas educacionais e prisões.
Desmontar a educação pública e departamentos policiais para pagar os credores públicos
Políticas de impostos locais costumavam servir à educação. Os Estados Unidos eram divididos em redes fiscais que financiavam distritos escolares, juntamente com avenidas e linhas de ônibus e sistemas de água e esgoto. Municípios com melhores escolas taxavam mais as propriedades, isso tornava mais desejável viver em tais distritos e aumentava os preços dos imóveis, não os diminuia. A melhoria urbana era autossuficiente e fazia com que distritos com impostos diminutos fossem esquecidos.
Mas essa não é mais a maneira norte-americana de se fazer as coisas. A educação foi particularmente demonizada. O sistema escolar californiano é uma das baixas da Proposição 13, a lei de congelamento dos impostos sobre a propriedade, promulgada em 1978. A Associação de Donos de Apartamentos da Califórnia convocou seu homem de frente, Howard Jarvis, para ser o lobista que prometeria aos eleitores que quase nada mudaria se educação e bibliotecas sofressem uma redução. Ele afirmava que “de qualquer maneira, 63 por cento dos graduados são analfabetos”, então quem precisaria de livros? A educação e outras partes dos gastos públicos foram congelados enquanto impostos sobre imóveis eram reduzidos em 57% - de 2.5 ou 3% a tão somente 1% da valoração. O resultado é que o sistema escolar californiano foi parar em quadragésimo-sétimo no ranking nacional.
Para os neoliberais, a beleza disso tudo é que o rebaixamento da educação torna os cidadãos mais suscetíveis à falsa consciência do Tea Party. Por exemplo, quando a lei de congelamento dos impostos foi promulgada, investidores comerciais prometiam proprietários de imóveis que impostos mais abrangentes tornam a habitação mais acessível e que aluguéis cairiam. Mas eles subiram, juntamente com os preços do setor imobiliário. Essa é a grande mentira dos neoliberais redutores de impostos: eles prometem que os cortes diminuirão custos ao invés de dizer que eles proverão uma herança inesperada para proprietários – e também para bancos já que os crescentes preços do aluguel estão “livres” para serem capitalizados em empréstimos hipotecários maiores. Novos compradores precisam pagar mais, o que aumenta o custo da vida e dos empreendimentos.
De volta a 1978, às vésperas da Proposição 13 proprietários comerciais pagavam metade dos impostos do setor imobiliário e proprietários de imóveis a outra metade. Mas agora a metade dos proprietários de imóveis se tornou dois terços, enquanto a parte dos comerciantes caiu para um terço. Agentes de crédito de bancos têm capitalizado os cortes de impostos em hipotecas maiores, assim os preços da habitação cresceram. O prefeito de Los Angeles, Antonio Villaraigosa, declarou ano passado que “é hora de enfrentar a inequidade da Proposição 13, que permite às grandes corporações arrecadar um dinheiro que era para os proprietários de imóveis. Nós não estamos financiando o governo. Nós só estamos dizimando o governo e os serviços que ele presta”. Ele propôs um imposto sobre a propriedade que restaurava taxas mais elevadas para investidores.
A educação escolar é uma ocupação desgastante. Essa é uma das razões pelas quais professores têm um dos sindicatos mais fortes dos Estados Unidos. Os salários deles não subiram tão rápido quanto as despesas porque eles concordaram em ter menos renda no curto prazo, a fim de obter aposentadorias ao pararem de trabalhar. Esses contratos estão agora sob ataque – para pagar os credores públicos. Estados e cidades agora insistem que os detentores de títulos não podem ser pagos uma vez que se remunere adequadamente força de trabalho dos servidores públicos.
Agora estamos vendo que loucura é não cobrar impostos sobre a propriedade e substituir receitas fiscais com empréstimos, pagando juros isentos de impostos para os mais abonados detentores de títulos do país. O corte na base de impostos sobre a propriedade encontra, assim, seu irmão gêmeo na onda de incumprimentos das promessas de aposentadoria.
Os impostos do setor imobiliário cairam de dois terços das receitas urbanas na década de 1920 para um sexto. Os subsídios do governo federal também estão sendo cortados, e as concessões estatais para as cidades estão seguindo o exemplo. Mas ao invés de tornar a habitação mais acessível, os cortes de impostos “liberaram” o valor do aluguel do coletor de impostos só para que os bancos fossem pagos.
Nesse sentido a Califórnia também esteve na linha-de-frente. Em 1996 os eleitores aprovaram a Proposição 218, que requer que toda nova taxa, imposto ou avaliação de propriedade tenha de ser aprovada por dois terços do eleitorado (algumas exceções feitas para que os sistemas de água e esgoto se mantivessem viáveis). Esse estratagema “mata a fera de fome”, sendo que a “besta” é a infraestrutura pública e os serviços sociais. Forças policiais estão sendo diminuidos e programas sociais cortados. E conforme a pobreza urbana cresce, os índices de criminalidade estão subindo.
Assim, o fato econômico mais importante a ser reconhecido é que o imposto renunciado tende a ser capitalizado em empréstimos hipotecários. E por deixar mais aluguéis disponíveis a serem pagos como juros, cortar os impostos sobre a propriedade obriga seus compradores a se afundarem em dívidas. Impostos menores sobre a propriedade significam maiores preços para a habitação – a crédito, porque uma casa ou qualquer outro imóvel vale quanto o banco empresta a novos compradores. Então, por capitalizar o valor do aluguel num fluxo de juros, os banqueiros ficam com o aluguel – e, consequentemente, com os cortes fiscais sobre imóveis.
Esse é o significado de livre-mercado hoje: renda criada por investimentos no setor público “livre” para ser paga aos bancos como juros em vez de ser recuperada pelo governo.
A maior parte da receita urbana são rodovias, escolas e sistemas de água e esgoto financiados pelo contribuinte.
Mas nem os especuladores imobiliários nem os banqueiros acreditam que esse investimento do contribuinte deva ser reavido por taxar o aumento no valor dos locais criado pelos próprios serviços públicos. Em vez de tornar o setor público auto-financiado conforme os serviços públicos se expandem para criar riqueza, os proprietários privados ficarão com os benefícios – enquanto os bancos capitalizam ganhos em empréstimos hipotecários maiores, que hoje respondem por 80% do crédito bancário.
O miolo da “falsa consciência” dos banqueiros – a matéria de capa com a qual os lobistas do Tea Party estão procurando doutrinar os eleitores norte-americanos – é que os impostos sobre a terra e os ativos financeiros punem os “criadores de emprego”. Os beneficiários desse gasto público dizem que precisam ser mimados com preferências fiscais para investir e empregar, enquanto os 99% devem ser chutados e incitados a trabalhar mais por menores salários. Essa falsa narrativa ignora que os maiores períodos de crescimento norte-americano foram aqueles em que os impostos inviduais e corporativos eram também maiores. O mesmo é verdadeiro na maioria dos países. O que está sufocando o crescimento econômico são as elevadas dívidas – devidas a 1% da população – e cortes de impostos sobre grandes riquezas.
O arrocho nas aposentadorias públicas é parte da crise geral
Paul Ryan, candidato indicado a vice-presidente pelo Partido Republicano, e Rick Perry, governador do Texas, caracterizaram a Previdência Social norte-americana como um esquema a la Charles Ponzi [2]. Isso é verdadeiro no óbvio sentido que aposentados devem ser pagos com o dinheiro de novos contribuintes. É assim que qualquer sistema pay-as-you-go deve funcionar. Mas o problema não é que o sistema deve ser pré-financiado para fornecer ao governo receita para cortar impostos dos 1%. O problema é que novas contribuições vão se esgotando conforme a economia se esmigalha com a sobrecarga de dívidas.
A Previdência Social pode ser paga facilmente. O Fed imprimiu U$13 trilhões para dar aos banqueiros em 2007. Ele pode fazer o mesmo com a Previdência Social – e com os subsídios cedidos pelo governo federal. O Fed pode cumprir com suas obrigações da mesma forma que cumpriu com os 1% de Wall Street. O problema é que o Fed só está disposto a fazer o que bancos centrais foram fundados para fazer. O intuito é salvar os detentores de títulos e as ambiciosas contrapartes dos bancos, não os 99%.
O problema é que o sistema financeiro está podre. Isso transformou a atual luta de classes numa guerra financeira na qual o fator principal é moldar a forma como os eleitores enxergam o problema. O truque é fazê-los pensar que cortar impostos barateará o custo de vida e a habitação, quando o entendimento que deve ser propagado é o seguinte: cortar impostos só faz com que mais renda para empréstimos caia no colo dos banqueiros, o que afundará mais ainda a economia.
Políticos democratas ou republicanos não querem taxar mais as finanças, os seguros ou o setor imobiliário. A postura deles está alinhada com o que querem os financiadores de suas campanhas: deixar Wall Street mais rica.
É o velho problema das prioridades. As dívidas não podem ser pagas e não serão pagas. Então, a questão é quem deve ser priorizado, o 1% ou o 99%?
Insiste-se que a austeridade e a redução do Estado são inevitáveis, não uma escolha política que prefere os credores públicos e o 1% aos 99% ou uma retribuição do dinheiro gasto comprando políticos e fazendo eleitores acreditarem que cortar impostos sobre a propriedade e sobre os ricos ajudará a economia.
Se os Estados Unidos continuarem a permitir que o 1% legisle, a economia empobrecerá muito em pouco tempo. A era do crescimento yankee chegará ao fim.
Alguém tem que ceder. Ou seja, é hora de dar calote. Caso contrário, Wall Street nos transformará na Grécia. Esse é o plano financeiro, para ser claro. É a estratégia da atual guerra financeira contra a própria sociedade. Na Letônia, eu conversei com a liderança do banco central. Ele me explicou que os salários do setor público cairam 30 por cento e isso puxou os salários do setor privado para quase tão fundo quanto. Neoliberais chamam isso de “desvalorização interna” e prometem que isso fará das economias mais competitivas. A realidade é que a desvalorização desfaz o mercado interno e faz os trabalhadores abandoná-lo.
(*) Michael Hudson recentemente publicou The Bubble and Beyond, obra que coloca os setores financeiro e imobiliário na raiz da crise fiscal urbana. Ele é professor de Economia na Universidade do Missouri (Kansas City).
Tradução: André Cristi
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