Fonte: Diplomatique
Causa espanto a indiferença e a tolerância dos “anarquistas” em relação às apropriações mais ou menos indevidas que muitos andaram fazendo do rótulo de “libertário”. Mas eles rebatem dizendo que delimitar o termo equivaleria a contrariar os próprios princípios que o norteiampor
Jean-Pierre Garnier
Por muito tempo, os termos “anarquista” e “libertário” foram considerados indissociáveis. As organizações que os adotavam viam nessas expressões uma forma de definir seu posicionamento na esfera política – mais precisamente fora dela ou em seu limiar.
Muitos os combatiam ou os reprovavam. Além dos guardiões oficiais da ordem burguesa, seus principais adversários eram os membros de outros partidos, tanto de esquerda como de direita, jornalistas de toda sorte e a “opinião pública”, que sempre enfiava os anarquistas e os libertários dentro do mesmo saco.
Hoje em dia, a associação entre as duas palavras continua pertinente aos olhos dos interessados pelo tema, ainda que eles façam questão de precisar por que essas denominações não são sinônimas. O anarquismo, dizem, é a teoria política que escora as duas noções e tem como fim último a autoemancipação coletiva dos trabalhadores diante dos poderes que os oprimem. Tal objetivo implica a autolibertação dos indivíduos – emblema da vertente libertária – em relação às instituições, às normas e às crenças que os alienam. Colocada dessa forma, a distinção entre as duas noções na verdade ressalta ainda mais sua complementaridade semântica e política.
Em contrapartida, fora dos círculos restritos cujos integrantes acreditam que a existência do Estado continua sendo uma ameaça às liberdades, tudo indica que a associação entre anarquistas e libertários deixou de ser tão óbvia assim. De fato, tornou-se uma atitude comum entre políticos, intelectuais e jornalistas opor de maneira dicotômica os termos “anarquista” e “libertário”. De um lado, o anarquismo tende agora a substituir o falecido comunismo no papel de figura do Mal, ao lado do fundamentalismo islâmico. De outro, o epíteto “libertário” acabou constituindo um rótulo cultural fartamente veiculado na mídia, muito utilizado pelos “revoltados de butique” de toda laia, que disfarçam sua adesão à ordem estabelecida por meio de um verniz anticonformista1.
O caos niilista
Vale lembrar que esse duplo processo de demonização e de neutralização não é exatamente uma novidade. A partir do final do século XIX, o anarquismo poderia ter sido facilmente identificado com o terrorismo por sua “propaganda por meio do fato” – atentados realizados por alguns grupos na Rússia e na França. E de maneira mais geral, o anarquismo seguiu mantendo por muito tempo o significado de um caos social niilista, afastando-se da concepção da vida em sociedade que o geógrafo Elysée Reclus resumiria na fórmula “a ordem sem o poder”2.
Posteriormente, o anarquismo não tardou a ser alvo de outra descaracterização linguística, só que dessa vez destinada a valorizar artistas e escritores que se dedicavam abertamente a “atropelar os códigos estéticos burgueses”. Ao longo do século XX, muitos se enquadraram nessa vertente, desde os protagonistas do movimento Dadá e da “revolução surrealista” que lhe sucedeu, até os “turbulentos” cineastas da Nouvelle Vague, passando por certos romancistas ou ensaístas reacionários do pós-guerra que se colocavam como “anarquistas de direita”.
Mais tarde, o qualificativo de “libertário” tomou seu lugar, entre outros, no campo da música popular francesa, a “chanson”, com Georges Brassens, Jacques Higelin e Renaud. Após ter sido dissociado de um anarquismo que acabara classificado como doutrina de transformação social obsoleta3, esse termo acompanhou uma liberação dos costumes e das mentes, particularmente afinada com a liberalização da economia, a ponto de dar à luz o seguinte oximoro mutante: o do “liberal-libertário”.
Antes de ser sacramentada como um conceito, no sentido publicitário do termo, essa expressão fora proferida como acusação por um sociólogo do Partido Comunista Francês (PCF), para fustigar o advento de um “capitalismo da sedução”, simultaneamente repressivo no plano “social” e permissivo no plano “societário”.
Trata-se de uma descrição precisa dos tropeços direitistas de certos líderes da revolta de maio de 1968, que passaram a menosprezar a revolução, valorizando apenas aquela das subjetividades4. O mais destacado entre eles é ninguém menos que Daniel Cohn-Bendit, atualmente deputado europeu pelo partido ecologista alemão Die Grünen. Como tantos outros, ele passou “do ‘detestar os poderosos’ para a paixão pelo poder; do ‘não’ sistemático da contestação para o ‘sim’ extasiado do assentimento; da candura e da intransigência de um levante iminente para as posturas e as imposturas de um conformismo servil”5.
Transgressão individual
Ao longo dos anos, com o aumento das desigualdades, da precariedade e da pobreza no mundo, a dupla “liberal-libertário” aos poucos perdeu a credibilidade. Isso, porém, não resultou numa reaproximação com o anarquismo. Ao contrário: a dissociação entre os dois só se aprofundou. Enquanto este último é cada vez mais criminalizado, principalmente em função da retomada das lutas baseadas na ação direta, uma reação ao agravamento da marginalização em massa e ao endurecimento da repressão, o posicionamento libertário goza de prestígio entre as elites. Prova disso é o fascínio crescente do filósofo Michel Onfray, cujo “individualismo hedonista e ateu” criou certa ilusão nos meios anarquistas, apesar do seu apetite publicamente assumido por uma “gestão libertária do capitalismo”.
Causa espanto a indiferença e a tolerância dos “anarquistas” em relação às apropriações mais ou menos indevidas que muitos andaram fazendo do rótulo de “libertário”. Mas eles rebatem dizendo que delimitar o termo equivaleria a contrariar os próprios princípios que norteiam esse rótulo. E acrescentam a seguinte pergunta: as recuperações e os desvirtuamentos dos quais a expressão tem sido objeto não seriam uma prova, afinal, de que a causa libertária vem ganhando popularidade? Esses supostos anarquistas simplesmente parecem não perceber que toda essa movimentação leva à perda do radicalismo crítico, que é monopolizado e absorvido por uma culturalização individualista e desengajada da política.
Dentro de um contexto de restauração política e ideológica, estamos assistindo a uma disputa na qual os adversários opõem o “social”, assimilado ao alistamento militar e à uniformização, ao “societário”, que é o epicentro de todas as “libertações”, para deixar claro que a submissão às “obrigações geradas pela economia” de maneira alguma implica a renúncia aos valores contestatórios do passado. Daqui para frente, preocupado acima de tudo com seu desenvolvimento pessoal imediato, o neopequeno-burguês “libertário” rejeitará toda perspectiva de autoemancipação coletiva, que ele enxergará como uma ameaça contra a democracia e o Estado de direito.
Limitada ao modo de vida concebido como “estilo de vida”, a “não-conformidade” não tem mais motivo para investir contra os códigos e as normas oficiais, uma vez que sua “transgressão” individual, institucionalizada, subvencionada e mercantilizada participa da renovação da dominação capitalista. Em contrapartida, agora que contam com aprovação – espalhafatosa ou tácita – dos beneficiários dessas liberalidades, os governantes poderão se dar ao luxo de reprimir toda forma de luta, comportamento ou palavra que represente um obstáculo para essa dominação. Isso equivale a dizer que os “neolibertários” nada fazem senão acrescentar o indispensável prefixo “neo” a um conservadorismo reforçado.
Jean-Pierre Garnier é sociólogo, autor do livro Contra os territórios de poder.
1 Vale lembrar que o neologismo “libertário” nasceu no final dos anos 1850 da escrita corrosiva de um anarquista, Joseph Déjacque, que dedicou sua vida a espinafrar os compromissos e os comprometimentos da pequena burguesia republicana da época.
2 De modo algum isso significa que se possa “mudar o mundo sem tomar o poder”, segundo afirmarão alguns teóricos importantes em sua busca de alternativas à globalização neoliberal. Em primeiro lugar, porque é imprescindível tomar o poder da burguesia para mudar o mundo. Em segundo, porque o poder de mudar o mundo exclui, para os anarquistas, que alguém possa exercê-lo “sobre o povo”, já que é precisamente este último que, auto-organizado, deteria o poder em vez de delegá-lo.
3 A “velha guarda” anarquista francesa não raro se mostra vulnerável a essa depreciação. Atolada no culto aos grandes ancestrais e às polêmicas datadas – como aquela de Proudhon e Bakunin versus Marx e Engels –, reduzindo o pensamento em torno da filosofia de Marx ao marxismo de aparelho (partidário ou estatizante), ignorando os pensadores mais importantes do comunismo libertário (A. Pannekoek, O. Rühl e P. Mattik) e movida por um antimarxismo visceral, ela acaba deixando de lado a análise materialista das transformações do capitalismo, arriscando-se a não entender mais nada do processo e chegando até mesmo a dar crédito às análises de alguns defensores do sistema em vigor, tais como Stéphane Courtois.
4 Michel Clouscard, Néo-fascisme et idéologie du désir, Denoël, 1973 ; Le capitalisme de la séduction, Éditions sociales, 1981.
5 François Cusset, La décennie – Le grand cauchemar des années 1980, La Découverte, 2006.
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