Por Manolo - Passa Palavra
Os deslizamentos de terra são um problema crônico de Salvador. Já no século XVIII eles eram registrados. Do mesmo modo, as chuvas de outono/inverno são cíclicas em Salvador. É normal que entre abril e maio os soteropolitanos já esperem que o céu lhes desabe sobre as cabeças. E o relevo da cidade é, realmente, irregular: antes do surto de tamponamento e aterramento vivido a partir dos anos 1960, Salvador era uma cidade repleta de rios, riachos, córregos, lagoas, nascentes e minadouros, tudo isso interferindo no relevo e fazendo-o pleno de morros e vales. Além disso, há uma falha geológica que corta uma linha rente ao mar banhado pela Baía de Todos os Santos, aproveitada pelos portugueses para construir uma cidade dividida entre um centro administrativo e residencial na acrópole e um centro portuário e comercial rente à praia. Esta falha geológica, que não se limita ao Centro da cidade, estendendo-se até os subúrbios, é ocupada esporadicamente há séculos, a permanência dependendo da capacidade de resistir às chuvas.
Este é o diagnóstico feito por, literalmente, todos os planos de desenvolvimento urbano da cidade, desde o plano do Escritório de Planejamento Urbano da Cidade do Salvador (EPUCS), de 1948, até o recente Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU), de 2008. Não bastasse isso, não há entre as classes exploradas soteropolitanas quem não tenha sofrido na pele as consequências de um deslizamento, ou quem não conheça quem as tenha sofrido; isto cria um saber coletivo que se vai transmitindo ao longo dos séculos – o que, numa cidade fundada em 1549, quer dizer alguma coisa.
Mas que se faz diante destes fatos? Pouco, para não dizer nada. Historicamente, o espaço urbano de Salvador é segregado entre os terrenos dos topos de morros, das cumeadas e das áreas planas, muito valorizados e sistematicamente ocupados pelas classes dominantes de cada momento, e as encostas, os vales encharcados, as pedreiras, a falha geológica – em suma, o que não tem valor no mercado de terras, por isto mesmo ocupado sistematicamente pelas classes exploradas de cada momento. Ninguém vai morar pendurado na encosta porque quer; vai-se para lá porque se é empurrado, forçado, levado a isso por circunstâncias econômicas e sociais.
Ao longo dos anos, a remoção forçada é a principal forma de tratamento da questão. E as remoções são tão drásticas que, em tempos de menos chuva, comunidades de encosta preferem ver o diabo a ser visitadas pela Defesa Civil. (Diga-se de passagem que, nas chuvas recentes, a Defesa Civil tem sido ajudada pelo Exército a, digamos, “convencer” as famílias a sair, sob a desculpa de que se trata de medida necessária para assegurar a proteção dos poucos bens restantes, sempre sob risco de saque nas casas abandonadas ou nos galpões provisórios.)
Em que resulta a remoção pela Defesa Civil municipal? Em que as famílias são encaminhadas para apartamentos do programa Minha Casa, Minha Vida, ou que recebem um auxílio temporário para reconstruir sua vida. Este auxílio, que até um ou dois anos atrás era de R$ 150,00, agora passou a R$ 300,00, e é pago (com atrasos sistemáticos) por até seis meses; o pagamento de um auxílio extra, no valor de R$ 2.364,00, é uma novidade cujos resultados ainda estão por ser vistos. (E não pensem os mais afoitos que o Governo da Bahia trataria a questão com mais cuidado: o auxílio pago pelo governo está congelado há anos em R$ 250,00, majorado para R$ 450,00 para famílias na poligonal do Centro tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).) Fora isso, a rotina é passarem as famílias alguns meses em galpões alugados, ou em quadras de escolas municipais.
E é só isso o que se faz? Sim. Embora o sistema de defesa civil municipal preveja, tal como os sistemas estadual e federal, ações preventivas e envolvimento da comunidade no processo de prevenção de desastres, no máximo a solução apresentada é o fornecimento emergencial de lonas para cobrir os terrenos expostos à chuva.
A responsabilidade pela situação, é claro, está sempre, invariável e inapelavelmente, em dois lugares: no povo e nos céus. Já se tratou neste site do ridículo que é acusar o povo pela sua própria desgraça (ver aqui); vamos agora tratar da responsabilidade dos céus.
A Prefeitura de Salvador mente descaradamente quando diz que estas foram as chuvas mais fortes dos últimos 21 anos (ver aqui) entrevista com o prefeito Antônio Carlos Magalhães Neto). Quem quiser e tiver tempo, que vá até a página do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) e dê uma olhada (ver aqui). Quem não tiver tempo, siga lendo os dados abaixo.
Até agora, em abril de 2015, foram acumulados 271mm de precipitação. Vejamos o que dizem os registros para os anos anteriores.
Maio de 2014: 245mm. Junho de 2014: 264mm. Depois, uma diminuição no ritmo das chuvas, até dezembro. Julho de 2014: 201mm. Total acumulado dos três meses de chuva intensa: 710mm. Notem que no momento mais intenso de precipitação há uma diferença para menos de meros 7mm. Os entendidos poderão me dizer se estes 7mm representam chuva intensa ou chuva fraca.
Abril de 2013: 261mm. Maio de 2013: 218mm. Junho de 2013: 291mm. Total de três meses acumulados de chuva intensa: 770mm. Só aqui, já vimos que junho de 2013 teve chuvas mais intensas que abril de 2015.
Maio de 2012: 423mm. Junho de 2012: 167mm. Julho de 2012: 171mm. Total de três meses de chuva intensa: 761mm. Notem que em maio choveu uma vez e meia mais do que em abril deste ano.
Em resumo: as chuvas foram intensas, mas não estão assim tão “fora da curva” quanto a Prefeitura quer nos fazer crer. A responsabilidade pelos deslizamentos não está no céu, mas aqui embaixo, na Praça Municipal e no Centro Administrativo da Bahia. Embora seja o prefeito a estar na berlinda por decretar estado de emergência em determinadas áreas da cidade (o que lhe permitirá contratações sem licitação para prestar serviços urgentes), o Governo da Bahia também tem responsabilidades quanto à defesa civil, e ao longo de sucessivas gestões foi tão inepto quanto a prefeitura.
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