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quinta-feira, 30 de agosto de 2018

A democracia do século XXI (Por Pierre Rosanvallon)

Fonte: Nuso


A democracia do século XXI

A atual crise da democracia não se limita à «crise de representação». As eleições têm hoje menor capacidade de representação por razões institucionais e sociológicas e há mal-estar e desassossego cidadãos. O «povo» já não é apreendido como uma massa homogênea, assemelhando-se antes a uma sucessão de histórias singulares. Para dar conta desse fenômeno, é urgente ampliar a democracia de autorização em direção a uma democracia de exercício, o que requer uma democracia narrativa, com cidadãos iguais em dignidade e reconhecimento. Do contrário, o déficit de representação continuará provocando oscilações entre a passividade e o medo, que com frequência favorecem os chamados populismos de direita.

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Nota: uma versão deste artigo em espanhol foi publicada em Nueva Sociedad No 269, 5-6/2017, disponível em www.nuso.org . Tradução do francês de Celina Lagrutta.

O desencanto democrático contemporâneo é um fato estabelecido. Ele se inscreve com evidência em uma história feita de promessas não cumpridas e ideais traídos. Mas de onde ele provém mais precisamente e como superá-lo? Temos necessidade de um diagnóstico e devemos explorar soluções. Uma parte do problema decorre certamente dos defeitos e faltas dos homens e mulheres políticos, com frequência desvinculados da sociedade, aparentemente preocupados antes de mais nada com suas próprias carreiras e, por vezes, inclusive corruptos. Porém, esse processo da classe política, sobre o qual prosperam os partidos populistas, está longe de explicar tudo. Há, de fato, causas mais estruturais e profundas do fenômeno contemporâneo da desafeição democrática. Eu gostaria de frisar aqui uma delas, que estaria no centro do problema: o declínio do desempenho democrático das eleições.

O declínio do desempenho democrático das eleições

Para estabelecer a natureza e medir o alcance desse fenômeno, é preciso relembrar a teoria clássica da eleição, que reconstituo aqui pois ela tem permanecido apenas implícita e fragmentária nos fatos. Se tomamos o conjunto das justificações históricas da eleição, constatamos que se espera que ela cumpra as cinco funções democráticas essenciais:

- uma função de representação, ao designar representantes eleitos que expressem os interesses e os problemas dos diferentes grupos sociais;- uma função de legitimação das instituições políticas e dos governos;- uma função de controle sobre os representantes, que envolve a perspectiva de uma reeleição que exerce sobre eles uma pressão para cumprirem seus compromissos e implementarem seus programas. (As noções de voto retrospectivo e de reeleição sempre foram centrais para a apreensão do caráter democrático da eleição);- uma função de produção da cidadania, dando consistência ao princípio de «uma pessoa/um voto», que define o sufrágio universal (e contribui assim, em primeiro lugar, para a produção de uma «sociedade de iguais», retomando a fórmula de Alexis de Tocqueville, fundada na condição de igualdade compartilhada por todos, sendo que o exercício do direito de voto expressa com efeito um status de igualdade para todos, na medida em que cumprem uma função);- uma função de animação da deliberação pública, historicamente expressa pelo modo de organização das eleições, que repousava sobre a participação nas assembleias eleitorais nas quais era possível o intercâmbio de argumentos. (Durante a Revolução Francesa, o cidadão era definido como «membro de uma assembleia primária»). Vale recordar que o voto individual, expresso pela passagem por uma cabine de votação (chamada Australian ballot) só se difundiu a partir do início do século xx.

Se cumpria com essas funções, a eleição podia ser considerada o instrumento democrático por excelência. Mas logo se evidenciou, desde as primeiras experiências de sufrágio universal, que estas cinco funções estavam longe de ser cumpridas automaticamente. Daí a longa história, desde o início do século xix, dos projetos de reforma e as mudanças institucionais para melhorar o desempenho das eleições. Implementação de eleições proporcionais, formação de partidos de classe que sucederam os agrupamentos de notáveis, ou inclusive adoção do princípio de paridade para melhorar a qualidade representativa dos eleitos, por exemplo. Estabelecimento de comitês eleitorais e de primárias para reduzir o peso dos aparelhos políticos e associar os cidadãos à escolha dos candidatos. Adoção de regras que impedem a acumulação de mandatos ou restringem o número consecutivo destes para limitar a tendência à profissionalização da política. Mecanismos de revogação (recall) ou de impeachment para controlar os representantes eleitos mediante interrupção de seu mandato e chamado a novas eleições. Instalação de comissões independentes para garantir o bom funcionamento do processo eleitoral e tornar as eleições mais transparentes. Limitação das despesas eleitorais para reduzir o papel do dinheiro. Organização de campanhas oficiais para pôr os candidatos em pé de igualdade. Os projetos nesse campo são numerosos e ainda há muito a fazer para melhorar a qualidade do processo eleitoral. Mas não podemos permanecer nessa visão do progresso democrático se quisermos alcançar tal propósito. Por vários motivos:

1. Em primeiro lugar, as eleições têm hoje uma menor capacidade de representação, por razões institucionais e sociológicas. De uma perspectiva institucional, a centralidade crescente do Poder Executivo modificou a noção de representação. O projeto de representar a sociedade havia sido concebido no âmbito das assembleias parlamentares. Tratava-se, segundo a célebre fórmula de Mirabeau em 1789, de concebê-las como a composição ideal de uma imagem da sociedade em escala reduzida. A noção de representação era inseparável da expressão de uma diversidade. Hoje, no entanto, é a eleição do Poder Executivo que está no centro da vida democrática (seja esta eleição direta, como na França, ou indireta, derivada de uma maioria parlamentar, como na Alemanha e na Grã-Bretanha). É o que temos chamado de «presidencialização das democracias», com o problema de que uma só pessoa, o chefe do Executivo, não pode ter um caráter representativo propriamente dito, dado que a representação implica por definição a manifestação de uma pluralidade. À exceção, é claro, dos regimes cesaristas-populistas-totalitários (equivalentes deste ponto de vista), que pretendem se fundar em um princípio de encarnação: pense-se em Napoleão afirmando, de forma pioneira nesse sentido, ser um «homem-povo» (o que corresponde a um retorno secularizado à noção de rei-soberano que incorpora a sociedade, tal como Thomas Hobbes a havia formulado).


De um ponto de vista sociológico, a noção de representação se sustentava implicitamente na ideia de que a sociedade era composta por ordens, por corpos, por classes (o que levou Jean-Jacques Rousseau a afirmar que a representação tinha um caráter medieval). Esta dimensão continua sendo predominante, mas a sociedade não pode mais ser apreendida apenas desse modo. Entramos também em uma nova era da identidade, ligada ao desenvolvimento de um individualismo de singularidade. Isso modifica as percepções da sociedade e as expectativas dos cidadãos. Abre-se assim uma nova etapa da emancipação humana, caracterizada pelo desejo de ter acesso a uma existência plenamente pessoal. Seu advento está relacionado à maior complexidade e heterogeneidade do mundo social, bem como às mutações do capitalismo. Porém, de forma mais profunda ainda, o advento dessa nova era se vincula ao fato de que os indivíduos são agora determinados tanto por sua história pessoal como por sua condição social. A confrontação com os acontecimentos, as provações sofridas ou as oportunidades reencontradas são o que conforma hoje suas existências, marcando pontos de estagnação, condenando a retrocessos ou proporcionando melhoras de posição. Duas pessoas provenientes do mesmo entorno ou com a mesma formação podem, assim, traçar percursos de vida fortemente divergentes, a depender de terem passado ou não pela experiência de um divórcio ou do desemprego. Os trabalhos dos psicólogos têm ressaltado, nesse mesmo sentido, o fato de que hoje os indivíduos não são mais tão sensíveis àquilo que possuíam em determinado momento quanto àquilo que temem perder ou esperam ganhar. É de forma dinâmica que eles consideram cada vez mais a sua existência. O indivíduo-história, necessariamente singular, sobrepôs-se assim ao indivíduo-condição, mais identificado de forma estável a um grupo, constituído em torno de uma característica central. Representar situações sociais torna-se então necessário, ao passo que antes só se tratava de representar condições sociais. Não é tanto a designação de um representante o que se faz necessário neste caso, mas sim a consideração pública das experiências e situações vividas.

2. As eleições também se tornaram menos eficazes para legitimar os poderes, ainda que a característica primeira e mínima de um regime democrático continue residindo, de forma evidente, na escolha dos governantes pelos governados. Essa afirmação fundacional incluiu, desde as origens, uma aproximação importante: a da assimilação prática da vontade geral à expressão majoritária. Mas essa aproximação não foi discutida. O fato de que o voto da maioria estabeleça a legitimidade de um poder foi, com efeito, universalmente admitido como um procedimento identificado com a própria essência do fato democrático. Uma legitimidade definida nesses termos foi imposta primeiramente como ruptura com um antigo mundo no qual as minorias ditavam sua lei. A evocação da «grande maioria» ou da «imensa maioria» bastava então para dar corpo à afirmação dos direitos de muitos diante da vontade claramente particular de regimes despóticos ou aristocráticos. Mas o fato é que assim misturaram-se, na eleição democrática, um princípio de justificação e uma técnica de decisão. Sua assimilação rotineira terminou mascarando a contradição latente que subjazia. Os dois elementos não são de fato da mesma natureza. Como procedimento, a noção de maioria pode ser imposta ao espírito, mas não é a mesma coisa se a entendermos sociologicamente. Ela adquire, neste último caso, uma dimensão inevitavelmente aritmética: designa aquilo que continua sendo uma fração, ainda que dominante, do povo. Ora, a justificação do poder pelas urnas sempre remeteu implicitamente à ideia de uma vontade geral, e portanto a de um povo como figura do conjunto da sociedade. Fez-se então como se o maior número valesse pelo todo e a eleição majoritária fosse então suficiente para justificar a ação dos governantes. Essa aproximação fez esquecer que a democracia eleitoral repousava sobre algo que é da ordem de uma ficção, no sentido jurídico do termo. O problema é que essa ficção tem se tornado cada vez mais problemática, por uma razão decisiva: o próprio termo «maioria» não possui mais o valor simbólico e prático de outrora. Embora permaneça perfeitamente definido aritmética e juridicamente, em termos sociológicos não ocorre o mesmo. O interesse do maior número não é tão facilmente assimilado como no passado ao de uma maioria. O «povo» não é mais apreendido como uma massa homogênea, e sim como uma sucessão de histórias singulares, uma somatória de situações específicas. É por isso que as sociedades contemporâneas são cada vez mais compreendidas a partir da noção de minoria. A minoria não é mais a «pequena parte» (que deve se submeter a uma «grande parte»): ela se tornou uma das múltiplas expressões difratadas da totalidade social. A sociedade se manifesta atualmente sob a forma de uma ampla variedade de condições minoritárias. «Povo» é agora também o plural de «minoria».

3. A temporalidade da vida política, por sua vez, transformou-se de diversas maneiras. A noção de programa, em primeiro lugar, perdeu sua consistência em um mundo dominado pela incerteza, no qual cotidianamente é preciso lidar com crises locais e acontecimentos internacionais. Os programas de governo, que constituíram alguma vez o coração das campanhas eleitorais, delineando os grandes contrastes entre os partidos, supostamente deveriam ser logo postos em prática. Eles estabeleciam, desta forma, uma ligação entre o momento eleitoral e o tempo da ação governamental. Mas a nova relação com a urgência, vinculada a uma maior personalização dos confrontos, modificou essa capacidade de «projeção democrática» da eleição. Esta se reduziu, do mesmo modo, a um simples processo de nomeação e está muito fragilmente ligada a uma forma de validação das decisões dos governantes. Cabe acrescentar que, nesse contexto, o voto retrospectivo (retrospective voting) já não desempenha seu papel mais do que como uma democracia de rejeição, uma democracia negativa. Não cumpre mais uma função reguladora. Não contribui mais para o controle dos governantes uma vez eleitos, e sim para uma democracia de exercício que prolonga a democracia de autorização.

4. O projeto de construir uma sociedade de iguais esteve no cerne das revoluções fundacionais do século xviii, tanto nos Estados Unidos como na França. E o direito de voto foi considerado um de seus símbolos mais evidentes. Falava-se com frequência das eleições como «festas da democracia», dimensão que era validada por sua ligação com a organização das eleições no seio das assembleias deliberativas, como já foi mencionado. Tal dimensão foi reavivada no início do século xx, de modo perverso e degradado, com o conceito schmittiano de «democracia de aclamação». Reapareceu também mais recentemente com a ideologia populista do referendo, concebido este como manifestação imediata e sensível do povo. Mas o fato é que a dimensão deliberativa e comunitária da eleição foi se apagando, como demonstram as porcentagens de abstenção eleitoral, por um lado, e a redução do debate de ideias a slogans simplificadores, por outro. As eleições se converteram, nesse sentido, no momento privilegiado de expressão das frustrações democráticas, com a ascensão dos partidos populistas. A ideia de produção de uma sociedade de iguais deu passagem à celebração de um povo abstrato cujo rosto se desenha negativamente na rejeição de elites de contornos esquivos.


Por essas diversas razões, o desempenho democrático das eleições declinou. Elas continuam certamente jogando um papel essencial. Possuem uma função reguladora imprescindível e necessária ao constituírem o poder da última palavra. A virtude de sua definição mínima, tal como Joseph Schumpeter a formulou, continua sendo a de pôr fim aos conflitos de forma pacífica, dado que todos podem ao menos acordar sobre o fato aritmético de que 51 é maior do que 49. No entanto, isso não é suficiente para superar as expectativas democráticas, que permanecem insatisfeitas dessa forma. É por isso que nos encontramos hoje em busca de uma democracia pós-eleitoral (termo que considero mais adequado do que o de pós-democracia). Gostaria de esboçar aqui alguns traços, sublinhando que é no sentido da complexidade das formas e dos recursos da democracia que se pode vislumbrar seu desenvolvimento.

Tornar mais complexa a democracia para realizá-la

Ao descrever o advento do mundo democrático do qual era testemunha, Tocqueville observava: «A noção de governo se simplifica: o número sozinho faz a lei e o direito. Toda a política se reduz a uma questão de aritmética». Hoje seria necessário dizer exatamente o contrário. O progresso democrático implica agora tornar mais complexa a democracia, mediante a multiplicação dos registros de expressão da vontade geral, da ampliação das modalidades de representação, estabelecendo formas plurais de soberania. A simplificação da democracia hoje dá a mão à sua traição, sob a forma de regimes «autoritários-liberais» e de movimentos populistas que os fazem possíveis.

Rumo a uma representação narrativa. Em 1789, a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão apontava enfaticamente que «a ignorância, o esquecimento e o desprezo dos direitos humanos são as únicas causas das desventuras públicas e da corrupção dos governos». A precisão é essencial: a qualidade da democracia depende da presença permanente na vida pública das realidades vividas pelos cidadãos e da lembrança de seus direitos. Democracia não significa apenas soberania popular, deliberação pública, designação de representantes eleitos; democracia significa também atenção a todos, levando em conta explicitamente todas as condições. Isso implica desenvolver uma representação narrativa ao lado da clássica representaçãodelegação (que, aliás, funciona muito mal, tendo em vista que a função representativa dos partidos políticos foi se erodindo à medida que se integravam ao mundo dos governantes). Não ser representado significa, com efeito, ser invisível na esfera pública, não ter os problemas da própria vida levados em consideração e discutidos. A representação possui, nesse caso, uma dimensão cognitiva e expressiva. Isso vai além da noção de representação-figuração que classicamente costuma-se opor às concepções procedimentais. Existe, de fato, uma dimensão ativa e multiforme na representação-narração, ao passo que a representação-figuração pressupõe uma atenção às condições sociais concebidas de forma muito global.

Este projeto de uma democracia narrativa é também um meio para construir uma sociedade de indivíduos plenamente iguais em dignidade, igualmente reconhecidos e considerados, que possam fazer sociedade comum. Mais visibilidade e legibilidade ajudam ainda a tornar a sociedade mais governável e reformável. Uma sociedade com déficit de representação de si mesma oscila entre a passividade e o medo. Ela tende a ser dominada pelo ressentimento, que combina a cólera e a impotência, e não consegue então pensar concretamente na ação sobre si mesma. Essa sociedade deve constantemente simplificar e caricaturar o real esperando torná-lo maleável. A má representação leva desta forma a apagar a realidade, a torná-la indizível. A sociedade termina então sendo marcada por uma visão fantasmática de si mesma, erigindo bodes expiatórios para explicar todos os seus males. A democracia não pode viver a menos que os homens e mulheres se reconheçam tal como eles são para constituir um mundo comum. Isso exige que exista uma forma de intercompreensão entre seus membros. O custo da má representação é, por isso, tanto social e moral como individual. «Vivemos em uma terrível ignorância uns dos outros», lamentava-se Jules Michelet quando buscava explicar a dificuldade dos indivíduos em formar um povo fraternal na nova república democrática de 1848. Quando as realidades são mascaradas, as vidas são deixadas na escuridão, e os preconceitos e fantasmas governam a imaginação. É isso também o que alimenta a desconfiança e os medos. Quando os indivíduos se ignoram, os mecanismos de retraimento e «guetização» se multiplicam. Uma sociedade não pode desenvolver mecanismos de solidariedade e de reciprocidade se não houver certo grau de confiança em seu seio. Entretanto, essa «instituição invisível» que é a confiança possui uma dimensão diretamente cognitiva, como observara enfaticamente Niklas Luhmann. Não é de fato possível confiar em alguém que seja um total estranho, sobre quem não se sabe nada. Não se pode construir nada com aqueles de quem ignoramos quase tudo.A implementação de uma democracia narrativa depende menos de dispositivos institucionais do que do desenvolvimento multiforme de empresas que tenham como objetivo «narrar a sociedade». Isso envolve tanto as ciências naturais como a literatura, a fotografia e o cinema. Nos eua da grande crise dos anos 1930, fez-se uma tentativa nessa direção com o lançamento do Federal Writer’s Project (Projeto Federal de Escritores). Eu, mais recentemente, tentei de minha parte constituir na França o embrião de um Parlamento dos Invisíveis. Existe ali um campo de trabalho democrático essencial.

As novas vias da legitimidade democrática. Esses novos canais correspondem a abordagens da generalidade democrática que atenuam a realização de sua expressão eleitoralmajoritária tradicional, procurando encontrar o sentido de uma vontade geral entendida como expressão unânime da sociedade. Duas noções podem ser utilizadas para avançar nessa direção: a da imparcialidade e a do povo-princípio. A imparcialidade se refere a uma definição negativa da vontade geral. Uma instituição imparcial é uma instituição da qual ninguém (nem grupo de interesse, nem partido político, nem indivíduo específico) pode pretender se apropriar. O poder democrático de todos se apresenta nesse caso sob as formas do poder de ninguém. As autoridades independentes de vigilância e de regulação se apoiam nesse princípio. Algumas foram criadas por assembleias parlamentares para controlar e equilibrar um Poder Executivo suspeito de partidarismo; outras, pelo próprio Executivo para restaurar uma credibilidade debilitada ou conceder alguns de seus poderes em âmbitos nos quais não se sentia tecnicamente equipado. Seu número cresce atualmente em toda parte, sob a pressão também dos cidadãos que receiam os abusos de poder partidaristas por serem simplesmente majoritários.

O povo-princípio corresponde ao fato de que «o povo» não é apenas uma população. Tem também uma dimensão histórica. Não possui somente uma consistência imediata, estática; apreende-se também de forma dinâmica como uma comunidade fundada sobre valores compartilhados. Como qualificar essa dimensão coletiva senão a partir dos princípios que a constituem? Dar politicamente seu lugar ao povo implica então representar o povo «jurídico» em sua figura constitucional. Isso justifica a superioridade normativa da ordem constitucional. Os tribunais constitucionais têm por função representar esse povo no qual cada indivíduo conta, já que seus direitos são garantidos, enquanto a ordem majoritária por vezes toma decisões influenciadas pelos acontecimentos ou pela preocupação de privilegiar interesses específicos. O poder de todos se define aqui então como o poder de qualquer pessoa (ou seja, de todos os indivíduos que têm o direito de ter seus direitos protegidos).

A crescente influência desses dois tipos de instituições tem modificado progressivamente a natureza e o alcance dos poderes Legislativo e Executivo tal como tinham sido concebidos na teoria liberal e democrática clássica. Após acrescentar seu papel, as autoridades independentes de regulação e vigilância mudaram os termos em que se podia entender a democracia. Mas trata-se apenas de uma mudança de fato, pois essas instituições ainda não foram conceituadas como formas políticas novas, com um papel específico na ordem democrática. Da mesma forma, elas podem também conduzir a um aprofundamento inédito das democracias e não ao simples reforço de um liberalismo tímido. O papel dos tribunais constitucionais é, por exemplo, passível de se inscrever na perspectiva tradicional de um crescimento do poder do direito destinado a limitar e enquadrar a expressão da soberania popular. A oposição subjacente entre government by will e government by constitution não faz mais do que reproduzir um velho topos liberal. A questão da correção dos limites do poder majoritário neste caso continua se inscrevendo implicitamente na velha perspectiva da denúncia dos riscos da «tirania da maioria» à qual se entregavam no século xixaqueles que tinham medo de se verem subjugados pelo advento do sufrágio universal. Mas o desenvolvimento desses tribunais também pode ser visto como um instrumento de redução da margem de manobra dos governantes e, portanto, uma forma de aumentar o controle social sobre os representantes. Uma constituição, explicava nesse sentido Édouard Laboulaye, importante jurista do século xix, pode ser entendida como «a garantia de que dispõe o povo contra aqueles que fazem seus negócios, a fim de que não abusem do mandato que lhes foi confiado». As autoridades independentes de vigilância e regulação são também suscetíveis de serem pensadas a partir das duas perspectivas opostas.

Cabe observar que as «democracias autoritárias» (como a Rússia, a Turquia ou inclusive a Polônia e a Hungria), que poderíamos chamar de populistas, com frequência se opõem violentamente ao papel desses dois tipos de instituições. Elas são de fato as melhores expoentes de uma democracia puramente eleitoral-majoritária. Assim, devemos não apenas criticá-las por seu iliberalismo, mas também por seu incumprimento democrático. O problema é que hoje muitos democratas não apresentam essa inteligência em sua crítica espontânea.

Podemos, por fim, sublinhar que a noção de democracia indireta, tal como já a defini, que leva a refundar sobre novas bases aquela de regime misto, é mais operacional do que a distinção classicamente utilizada na ciência política entre input e outputdemocracy.

A democracia de exercício, para além da democracia de autorização. Nossos regimes podem ser chamados de democráticos, mas nós não somos governados democraticamente. Esse é o grande hiato que alimenta o desencanto e o desconcerto contemporâneos. Precisemos: nossos regimes são considerados democráticos no sentido de que o poder surge das urnas após uma competição aberta e de que vivemos em um Estado de direito que reconhece e protege as liberdades individuais. Trata-se certamente de democracias em grande medida inacabadas. Os representados se sentem então muitas vezes abandonados por seus representantes estatutários, e o povo, passado o momento eleitoral, se percebe bem pouco soberano. Mas essa realidade não deve ocultar outro fato, ainda mal identificado em sua especificidade: o de um mau governo, que também corrói profundamente nossas sociedades. Se a vida política se organiza ao redor de instituições que definem um tipo de regime, é também resultado da ação governamental, isto é, da gestão cotidiana dos assuntos públicos, instância de decisão e de comando. É o lugar de um exercício do poder que chamamos, em termos constitucionais, de Poder Executivo. É com ele que os cidadãos lidam imediata e cotidianamente. Por sua vez, o centro de gravidade da exigência democrática é definitivamente deslocado. Embora durante muito tempo esta última tenha estado ligada à determinação de um vínculo positivo entre os representantes e os representados, agora é a relação dos governantes para com os governados que deve ser considerada.

Para os cidadãos, a falta de democracia significa não ser escutados, ver que as decisões são tomadas sem consulta, que os ministros não assumem suas responsabilidades, que os dirigentes mentem com impunidade, constatar que a corrupção reina, que a classe política vive em uma bolha e não presta contas, e que o funcionamento administrativo permanece opaco.

O problema é que essa dimensão da política nunca foi pensada como tal. A democracia sempre foi entendida como regime, mas quase nunca como um modelo de governo. A prova disso é que as palavras «regime» e «governo» muitas vezes se confundem. A questão pode parecer secundária na primeira forma histórica do regime democrático, a do modelo parlamentar-representativo, no qual o Poder Legislativo domina todos os outros. Hoje, porém, o Poder Executivo se transformou no eixo central, e ele gira em direção a um modelo presidencial-governante das democracias. Se antes era o sentimento de má representação que concentrava todas as críticas, hoje o de mau governo também exige que se deem respostas.

Nos tempos de predomínio do Poder Executivo, a chave da democracia reside nas condições de controle deste último por parte da sociedade. A relação governados-governantes tornou-se a questão principal. O problema é que a única resposta que se tem dado a esse imperativo atualmente limita-se à eleição do chefe do Executivo. Implantou-se apenas uma democracia de autorização, uma permissão para governar que foi acordada. Nem mais nem menos. Isso claramente não é suficiente, como podemos ver no mundo dos responsáveis eleitos, que estão bem longe de se comportar como democratas.

Se podemos considerar que, em certas condições, a eleição é capaz de determinar adequadamente a relação entre representantes e representados, não ocorre o mesmo com a relação entre governados e governantes. Esse ponto é essencial. A designação de um representante consistiu historicamente em seu princípio de expressar uma identidade ou transmitir um mandato, todas questões que idealmente podiam ser cumpridas pelo fato eleitoral. A eleição era, com efeito, considerada capaz de estabelecer o representante em sua qualidade e funcionalidade intrínsecas, com a noção de permanência que o termo implica. Já a eleição de um governante não faz mais que legitimar sua posição institucional e não lhe confere nenhuma qualidade. O «desempenho democrático» de tal eleição – volto sobre isso – é, nesse sentido, inferior ao da eleição de um representante.

Daí, nesse caso, a imperiosa necessidade de ampliar a democracia de autorização em direção a uma democracia de exercício. O objetivo é determinar as qualidades que se esperam dos governantes e as regras positivas que organizam as suas relações com os governados. É no estabelecimento de tal democracia que se joga o essencial de agora em diante. De fato, é sua falta o que permite à eleição do chefe do Executivo abrir caminho para um regime iliberal, ou até mesmo ditatorial em alguns casos. Nosso presente está repleto de exemplos dessa natureza, cuja primeira ilustração foi constituída pelo cesarismo francês do século xix. As patologias sangrentas e destrutivas da democracia foram, no século xx, junto com o totalitarismo, patologias da representação. Tratava-se então de poderes que pretendiam ter superado as aporias estruturantes do sistema representativo e suas incompletudes através de uma perfeita encarnação da sociedade, constituindo «poderes-sociedade», justificando seu absolutismo por esta adequação. Estas velhas patologias continuam sendo uma ameaça, sem dúvida. Mas as novas patologias do século xxi mudaram de natureza. Elas decorrem agora da restrição da democracia governante ao simples procedimento de autorização ou a formas de referendo que constituem uma expressão geralmente empobrecida da vontade geral. Se existe uma doença do presidencialismo, é no sentido dessa atrofia.

Vale assinalar que a noção de democracia de exercício é mais forte e mais ampla do que a referência que normalmente se faz na ciência política à necessidade de considerar a ideia de qualidade democrática. Esta última, que enfatiza aspectos de gestão, não está incluída em uma redefinição global do conceito de democracia.

A democracia de exercício poder ser enfocada de dois ângulos. Em primeiro lugar, o dos princípios que devem reger as relações dos governantes para com os governados. Três me parecem essenciais: a legibilidade (noção mais ampla e mais ativa do que a de transparência), a responsabilidade e a reatividade (termo que talvez seja o mais adequado para traduzir o conceito de responsiveness em inglês). Esses princípios descrevem os contornos de uma democracia de apropriação. Sua aplicação permitiria aos cidadãos exercer mais diretamente as funções democráticas que durante tanto tempo ficaram açambarcadas pelo poder parlamentar. Eles outorgam também pleno sentido ao fato de que o poder não é uma coisa, e sim uma relação, e que são as características dessa relação que definem a diferença entre uma situação de dominação e uma simples distinção funcional, dentro da qual se pode desenvolver uma forma de apropriação cidadã do poder. Em segundo lugar, a determinação das qualidades pessoais requeridas para ser um «bom governante». São qualidades que não devem ser enumeradas para criar um retrato-robô idealizado, superposição de todos os talentos e de todas as virtudes, e sim para considerar mais operacionalmente as que forem necessárias para estabelecer um vínculo de confiança entre governantes e governados de modo a fundar uma democracia de confiança. A confiança, repito, entendida como uma dessas «instituições invisíveis» cuja vitalidade teve uma importância decisiva na época da personalização das democracias. Duas delas se impõem especialmente: a integridade e o falar com franqueza (a parresia, relembrada por Michel Foucault por sua importância na Grécia antiga).

A construção de uma democracia de confiança e de uma democracia de apropriação são as duas chaves do progresso democrático na era presidencial-governante. Esses princípios de bom governo não devem, no entanto, ser aplicados apenas ao Poder Executivo em suas diversas instâncias. Eles são chamados também a reger o conjunto das instituições não eleitas que têm uma função reguladora (as autoridades independentes), as diversas categorias de magistraturas, e todo o mundo da função pública. Trata-se de pessoas e instituições que exercem de uma forma ou outra uma autoridade sobre outros e que participam, desse modo, dos órgãos de governo.

É verdadeiramente uma segunda revolução democrática a que deve operar nessa perspectiva, depois daquela que constituiu a conquista do sufrágio universal. Ela nos fará entrar na democracia pós-eleitoral. Propus uma descrição de suas principais direções e de sua institucionalização em meu último livro, Le bon gouvernement [O bom governo]. Limito-me então a fazer referência a ele. Diante da democracia intermitente das eleições, esta é uma democracia permanente, que visa instaurar os princípios que acabo de expor.

Da voz do povo ao olho do povo. A voz do povo foi tradicionalmente a das urnas. Ela pode assumir outras formas de expressão, como os abaixoassinados e as manifestações de rua, por exemplo. Mas, na época da democracia de exercício, é também o olho do povo que aparece para desempenhar um papel significativo. Ao lado do cidadão-eleitor, a figura do cidadãocontrolador adquirirá então uma importância crescente. Esta figura tem uma longa história. Desde o início da Revolução Francesa, o termo «vigilância» se impõe para definir uma modalidade específica do exercício da soberania do povo. «Amigos da liberdade, que uma vigilância eterna nos ponha a salvo dos perigos que teríamos de correr se nosso destino fosse confiado inteiramente a nossos ministros», podia-se ler em um famoso jornal da época. A vigilância do povo era entendida como necessária para dar vida ao ideal de um governo guiado pelo cuidado do interesse geral. A vigilância era um meio de limitar as disfunções do poder e remediar o que chamei de «entropia democrática» (definida como um processo de degradação da relação entre eleitos e eleitores). O olho da vigilância do povo se impôs por essa razão como um dos temas principais do imaginário revolucionário. Era um meio de transformar uma forma de desconfiança em virtude democrática ativa. Constituía também um modo de consagrar a opinião pública como figura sensível e cotidiana do povo. «A palavra povo é um nome vazio se não significar opinião pública», dizia um importante jurista da época. Sem a manifestação dessa opinião, insistia, «o povo já não tem nome, é um ser puramente metafísico».

Associado mais tarde aos excessos do Terror, o termo «vigilância» foi abandonado. A dualidade confiança/desconfiança eleitoral dos cidadãos à qual se referia foi substituída finalmente por uma distinção muito menos rica, a da oposição entre democracia direta e democracia representativa. Hoje é evidente que se trata de uma redução que empobrece o ideal democrático, do qual o culto contemporâneo do referendo se tornou emblemático, com a ilusão de que ele canaliza uma expressão total e definitivamente realizada de um povo. Ilusão aritmética, o povo não se reduz à maioria; duplicada por uma ilusão procedimental, a democracia não se reduz a tomadas de decisão isoladas, implicando, pelo contrário, a construção, deliberada no tempo, de uma história comum. A noção de democracia de vigilância, com o caráter de permanência que ela implica, merece hoje, por isso, ser reativada. Tentei descrever suas diferentes figuras em meu livro La contre-démocratie [A contrademocracia]. Nele destaquei a distinção que conviria fazer entre uma desconfiança positiva, forma de atividade cívica que marca a exigência democrática, e uma desconfiança puramente negativa, crítica sistemática dos poderes e rechaço dos governantes. Ela é ainda mais essencial na medida em que vemos hoje esta segunda figura prosperando sob as formas da retórica populista.

O desafio contemporâneo

O ideal democrático, tal como o abordei, só pode então progredir complicando a democracia, acrescentando complexidade a suas instituições, seus procedimentos, suas modalidades de expressão da sociedade. Pelo contrário, as forças da simplificação são as que tendem a corromper o ideal pretendendo realizá-lo. Simplificação da representação pela pretensão da encarnação e do culto ao chefe, simplificação do exercício da soberania pela sacralização do referendo, simplificação da ideia de vontade geral pela onipotência do fato majoritário e a rejeição de outras figuras de expressão da generalidade. Complicação contra simplificação: eis o grande combate de nosso tempo. Seu resultado dependerá em parte da capacidade de esclarecer os necessários fundamentos teóricos. Esta é uma das grandes tarefas das ciências sociais de nosso tempo. A democracia deve, mais do que nunca, ser definida como regime que não deixa de se interrogar sobre si mesmo. Deve continuar sendo uma experiência viva e exigente, que não permanece fixa em um modelo.

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