Betânia de Moraes Alfonsin *
A agenda da política
habitacional a ser enfrentada no próximo período pelo prefeito ou
prefeita municipal que vencer o pleito de outubro passa por cinco
eixos estratégicos.
1. Integração
entre política urbana e política habitacional
Porto Alegre tem
574.831 domicílios, segundo dados do IBGE (Censo 2010). De acordo
com o mesmo Instituto, 48.934 desses domicílios estão vagos no
município, vale dizer: quase dez por cento do estoque habitacional
do município é constituído por imóveis ociosos, fechados, em
muitos casos retidos especulativamente. Quando se pensa em integração
da política urbana e habitacional, é necessário pensar não apenas
na construção de novas moradias, mas sobretudo é preciso pensar em
políticas que exijam dos proprietários destes imóveis que deem a
eles adequado aproveitamento, já que o atendimento da função
social da propriedade é condição para que a cidade também atenda
às suas funções sociais. O Estatuto da Cidade previu a notificação
para parcelamento ou edificação compulsórios (no caso de vazios
urbanos) e a notificação para utilização compulsória no caso de
manutenção de imóveis não utilizados ou subutilizados e estes
instrumentos não são aplicados no município há muito tempo. Neste
sentido, é evidente que a sustentabilidade da política habitacional
precisa pensar no adequado aproveitamento do estoque habitacional
disponível no município, e para isto a retomada da aplicação dos
instrumentos do Estatuto da Cidade para o combate à retenção
especulativa de imóveis urbanos em Porto Alegre é medida urgente de
justiça social e melhoria da gestão urbana.
2. Retomada dos
investimentos em Regularização Fundiária
O Programa Minha Casa,
Minha Vida, desenvolvido pelo Governo Federal através do repasse de
recursos via Caixa Econômica Federal alavancou a produção de
moradias em Porto Alegre. Todavia, implicou na secundarização de
programas em desenvolvimento no município e que constituem demandas
históricas do Orçamento Participativo, como as intervenções
relacionadas à Regularização Fundiária. A retomada das ações e
investimentos em regularização fundiária no município de Porto
Alegre é fundamental não apenas como medida de justiça social e
garantia do direito à cidade para a população que conquistou o
direito de permanecer no local ocupado originalmente para fins de
moradia, mas também para a credibilidade das ações do DEMHAB, já
que a interrupção de projetos leva a uma descrença, por parte da
população beneficiária, na palavra dos gestores públicos. Além
disto, a desaceleração das ações de regularização fundiária
retroalimenta os índices de produção irregular de cidade, que
giram hoje em torno de 10% do estoque habitacional do município,
segundo os dados do IBGE[1], e montam a mais de 470 áreas
irregulares, segundo censo bem mais realista realizado pela Equipe de
estudos urbanos do DEMHAB[2]. Vale dizer: de nada adianta a produção
de novas unidades sem que as unidades irregularmente produzidas sejam
definitivamente integradas à cidade.
3. Critérios
para o Programa Minha Casa, Minha Vida
Em relação ao
programa Minha Casa, Minha Vida, em que pese o inegável valor do
programa, é necessário realizar uma discussão pública sobre os
critérios de localização dos empreendimentos, para evitar a
periferização do programa e a repetição de erros já bastante bem
avaliados na história recente brasileira, como a construção de
moradias na “não cidade”, em áreas periféricas e fracamente
dotadas de infraestrutura, equipamentos e serviços urbanos. A
questão é que hoje a localização desses empreendimentos é
deixada basicamente a critério do empreendedor e evidentemente não
será a Caixa Econômica Federal o órgão que terá capacidade de
avaliar critérios de localização destes empreendimentos. O
município de Porto Alegre, como órgão licenciador, tem que ser
mais proativo ao aprovar (ou não) os empreendimentos, inclusive
através da utilização de gravames de AEIS (Áreas Especiais de
Interesse Social) em regiões bem localizadas e servidas de
infraestrutura para induzir para estas regiões a produção dos
empreendimentos do Programa Minha Casa, Minha Vida, já que a
localização dos mesmos é deixada hoje a critério do empreendedor.
Por razões óbvias relacionadas ao funcionamento do mercado
imobiliário, estes empreendimentos estão se realizando
principalmente em áreas mais periféricas de Porto Alegre, tendo em
vista o peso do preço da terra na composição do preço da unidade
habitacional. Para evitar o retrocesso, é preciso evitar as
tendências segregacionistas do mercado através de mecanismos de
planejamento urbano e gestão mais claros e capazes de prevenir os
erros cometidos durante o longo ciclo de produção de habitação de
interesse social pelo BNH ao tempo da Ditadura Militar.
4. Garantia da
observância da normativa internacional relacionada ao direito humano
à habitação adequada
As Nações Unidas,
através do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
esclareceu[3] os países membros acerca do significado da expressão
“direito humano à habitação adequada”. Em que pese o largo
tempo decorrido desde a promulgação de tal Comentário, até hoje é
bastante comum que o entendimento sobre a política habitacional
fique restrito à ideia de “moradia como mero abrigo”. A política
habitacional de Porto Alegre e de qualquer cidade brasileira daria um
salto de qualidade se adotasse o entendimento expresso pelas Nações
Unidas a respeito do que vem a ser “habitação adequada” como
parâmetro para suas intervenções. O comentário geral nº 4 diz
que são aspectos a serem levados em consideração “em qualquer
contexto”, os seguintes: (a) segurança legal da posse; (b)
disponibilidade de serviços, materiais, facilidades e
infraestrutura; (c) custo acessível; (d) habitabilidade (e)
acessibilidade (entendida como acesso não discriminatório aos
programas); (f) localização; (g) adequação cultural. Para que se
tenha uma ideia da importância desta normativa internacional, a
remoção realizada pelo DEMHAB no caso da Vila Chocolatão, por
exemplo, pode ter suprido a necessidade de abrigo daquela população
— todavia, no que diz respeito ao critério “localização”,
não se pode dizer que a intervenção tenha sido modelo, pois as
famílias foram relocalizadas do centro da cidade de Porto Alegre
para o limite de Porto Alegre com Viamão, distantes de opções de
trabalho, serviços de saúde, escolas, creches e outras facilidades
sociais que tinham anteriormente. Além disto, o Estatuto da Cidade
também garante o “direito à cidade sustentável” em uma
perspectiva bem mais ampla do que o mero acesso à moradia como
“quatro paredes”. Qualquer intervenção de política
habitacional tem que ser pensada globalmente, em todas as suas
dimensões e possíveis repercussões.
Como uma nota
conjuntural, importante no debate eleitoral e na política
habitacional que se deseja para o próximo período em Porto Alegre,
é preciso exigir dos gestores públicos a garantia de que a
preparação de Porto Alegre para a Copa de 2014 não será
acompanhada de violações de direitos humanos, especialmente do
direito à moradia adequada. Sem dúvida alguma, da mesma maneira que
estádios e obras viárias são tratados como prioridades pelos
governos, as relocalizações de moradias que se fizerem necessárias
às obras estruturais da Copa devem ser tratadas com absoluta
prioridade, garantindo o respeito às populações moradoras
tradicionais de áreas como a Vila Tronco, por exemplo. Pelo largo
tempo das ocupações nesta área da cidade, as famílias teriam o
direito a permanecer no local ocupado e, portanto, seu direito à
moradia, no que diz respeito à segurança da posse, já está sendo
ofendido. Se a relocalização é indispensável, a reparação das
famílias deve ser completa, com a oferta de unidades habitacionais
na região de origem (Bairro Cristal, Morro Santa Teresa, Vila
Cruzeiro) ou com indenizações em valores capazes de fazer frente à
aquisição de uma moradia no mercado imobiliário formal de Porto
Alegre, em bairros tão bem localizados geográfica e simbolicamente
quanto a Vila Tronco e adjacências. Além disto, é importantíssimo
garantir instâncias de debate sobre essa intervenção com a
população atingida, pois somente assim o direito humano das
famílias estará sendo respeitado.
5. Retomada da
participação popular na gestão da política habitacional
Como uma última
observação, mas não menos importante, ressaltamos a centralidade
da retomada da participação popular na gestão da política
habitacional em Porto Alegre. O esvaziamento dos espaços
institucionais de tomada de decisão nesta área, como o COMATHAB
(Conselho Municipal de Acesso à Terra e Habitação), precisa ser
urgentemente revertido com uma estratégia clara de reconstituição
destes espaços e de empoderamento efetivo do Conselho Municipal de
Habitação. Além disto, as intervenções pontuais, como uma
relocalização de uma vila, por exemplo, deve ser acompanhada antes,
durante e depois da intervenção, por instâncias que garantam a
participação efetiva dos moradores concretamente atingidos pela
medida. É preciso superar a ideia de “favor”. A gestão
democrática de planos, programas e projetos de intervenção urbana
é uma diretriz da política urbana preconizada pelo Estatuto da
Cidade, e, portanto, é vinculante para as políticas públicas na
área de habitação. Somente com a retomada do controle social e a
democratização efetiva da gestão é possível enfrentar seriamente
a agenda e as questões aqui apontadas como estratégicas para uma
política habitacional mais justa, democrática e sustentável em
Porto Alegre.
Notas
[1] Segundo dados
do Censo de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, Porto Alegre tem hoje 56.024 unidades habitacionais em
“aglomerados sub-normais”, abrigando 192804 pessoas em 108
assentamentos. Sabe-se, no entanto, que os dados do IBGE são menores
que os dados da própria municipalidade para a questão da
irregularidade em Porto Alegre, já que pela metodologia utilizada
pelo Instituto são contabilizados como “aglomerados subnormais”
apenas os assentamentos com 51 unidades habitacionais ou mais e
muitas das vilas de Porto Alegre são menores do que isto,
“mascarando” o resultado e invisibilizando uma parcela importante
da população de baixa renda. Dados disponíveis neste
link. Acesso em 30/07/2012.
[2] Levantamento
realizado pela Unidade de Pesquisa do Departamento Municipal de
Habitação apurou existência de 479 núcleos e vilas irregulares em
Porto Alegre, onde estão localizados 74.522 domicílios.
[3] Através do
Comentário Geral nº 4, de 1991.
* Betânia de
Moraes Alfonsin é jurista e urbanista. Doutora em Planejamento
Urbano e Regional pelo IPPUR- UFRJ, Professora da Faculdade de
Direito da FMP e da PUCRS.
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