Caetano e Gil em uma de suas composições têm um verso que diz “O Haiti é aqui” e no seguinte contrapõe: “O Haiti não é aqui”. Felizmente, parece que Dubai poderia ser, mas “não será aqui”.
O Movimento Ocupa Cais Mauá em uma Carta Aberta veiculada aqui no Sul21 uns dias atrás, protestou contra a falta de transparência e de diálogo, do desprezo das autoridades com o interesse público, com o patrimônio histórico e com o meio ambiente. Justificadamente, observe-se. Afirmam que não houve participação popular na tomada de decisões que pretendem transformar radicalmente o espaço urbano da área mais central da cidade, o cais Mauá. No porto, onde tudo começou. Flagrante desrespeito a um direito cidadão do porto-alegrense.
O incrível é que um projeto desta magnitude, que envolve ações e decisões dos três níveis de governo – o federal, o estadual e a Prefeitura – tenha acumulado tantos equívocos ao longo das duas últimas décadas.
O incrível é que um projeto desta magnitude, que envolve ações e decisões dos três níveis de governo – o federal, o estadual e a Prefeitura – tenha acumulado tantos equívocos ao longo das duas últimas décadas.
Antonio Brito (1995/1998) – aquele ex-governador que aumentou a alíquota do ICMS para que o gaúcho doasse à GM centenas de milhões de reais para a construção de sua fábrica em Gravataí – em meados dos anos noventa elegeu a chamada “revitalização do Cais Mauá” como projeto prioritário do seu governo. Realizou algumas reuniões com órgãos federais e Prefeitura, conseguiu algumas manchetes na mídia e a coisa ficou nisso. Pouco andou.
O governo Olívio (1999/2002) avaliou o empreendimento – à época apenas uma ideia, sequer existia um anteprojeto -, e não o elegeu como prioridade. Os entraves eram muitos: restrições existentes na legislação federal, necessidade de alterações radicais no Plano Diretor, dentre outros, impediram mais uma vez que a coisa andasse.
Yeda Crusius (2007/2010) viu no empreendimento a possibilidade de viabilizar uma mega investimento em área nobre da capital. Uma verdadeira “laranja de amostra” para seu pálido governo, desde o início envolvido em denúncias de graves irregularidades. A RBS defendeu até o fim sua ex-empregada, tentando criar uma marca para sua gestão: o famoso e desacreditado “Déficit Zero”. A marca justa e adequada do seu governo deveria ser: “Investimento ZERO, escândalos 1.000”.
Sem desatar todas as pontas do intrincado projeto, Yeda atropelou. Desconsiderando a existência de uma ação judicial da ANTAQ – autarquia federal dos transportes aquaviários – contestando o empreendimento, elaborou às pressas um edital de uma PPP (Parceria Público Privada) para escolha de um grupo empresarial que teria 120 dias para elaborar o projeto final de engenharia e arquitetura e iniciar as obras, de valor estimado em 700 milhões de reais. O anteprojeto inicial previa a construção de três gigantescas torres de 100 metros de altura, shopping Center, áreas de lazer e de alimentação – bares, restaurantes -, além de um estacionamento subterrâneo para 5.000 veículos.
A assinatura com o consórcio vencedor, prevista para o final de 2010, foi sustada, no aguardo da sentença final da ação da ANTAQ. O governo Tarso Genro (2011/2014) conseguiu “desatar o nó”: negociando um acordo com a ANTAQ. A retirada da ação tornou possível a assinatura do contrato com o consórcio Porto Cais Mauá no final de 2011.
Decorridos três anos não foram sequer elaborados, ainda, os projetos finais de engenharia e de arquitetura . O consórcio vencedor demonstrou não ter capacidade para obter os recursos necessários ao empreendimento. Menos mal, ao que tudo indica, Porto Alegre poderá ser poupada dos efeitos nocivos deste sonho megalômano.
A Prefeitura dos governos Fogaça-Fortunati – sempre muito receptiva aos apelos e interesses do capital imobiliário -, apressou-se em aprovar a Lei Complementar 04/2009 que elevou alturas (máxima de 52 para 100 metros), taxas de ocupação, índices de aproveitamento e zoneamento de uso dos 180 hectares da área do projeto. Tudo sem exigir contrapartidas dos empreendedores na forma de abertura e ampliação de vias e outras obras de infraestrutura viária necessários para assegurar o acesso à área. Prática usual deste governo, que recentemente desobrigou a OAS das contrapartidas do projeto Arena Grêmio. Teve que voltar atrás pressionado por ação do Ministério Público.
O consórcio vencedor descumpriu prazos e condições do edital e do contrato firmado, justificando sua anulação. Desfeito o negócio, a Prefeitura deverá, também, revogar a Lei Complementar 04/2009 que mutilou o plano diretor da cidade, estabelecendo um generoso regime urbanístico “especial” para viabilizar mais um “grande negócio”. Um desvario “à la Dubai”.
Paulo Muzell é economista.
Sem comentários:
Enviar um comentário